Topo

Sem-teto sonha em ser pianista e ensaia na rodoviária do Tietê, em SP

"Esse piano é um sonho pra mim. É um refúgio dos que partem e uma celebração dos que chegam", diz Cobertinha - Ester Caetano/UOL
'Esse piano é um sonho pra mim. É um refúgio dos que partem e uma celebração dos que chegam', diz Cobertinha Imagem: Ester Caetano/UOL

Ester Caetano

Colaboração para o TAB, de São Paulo

21/05/2023 04h01

Ecoou no Terminal Rodoviário Tietê, na zona norte de São Paulo, uma melodia suave em uma tarde movimentada de fins de abril. Era do piano, um alemão Fritz Dobbert meia-cauda, um pouco desafinado e com marcas de murros e teclas faltando, que fica no segundo piso da rodoviária desde 2011.

Por muito tempo, o piano foi apenas decorativo, propriedade da lanchonete Paneria, a ponto de ter cadeados nas tampas. Até que, em 2013, um viajante cubano, à época em situação de rua, pediu para tocar o instrumento, conta uma garçonete — a história é famosa, inclusive no GRSA Compass, o grupo que opera a lanchonete. Desde então, quem transita pelo terminal pode se aventurar nas suas notas.

Duas vezes ao dia, o sul-mato-grossense Michael Duard, 36, conhecido como Cobertinha, tenta a sorte no piano.

Há 12 anos na capital paulista, ele lembra que migrou em busca de emprego e trabalhou três vezes CLT como auxiliar de limpeza, mas na pandemia foi mandado embora: conta que pegou uma bactéria no estômago e não conseguiu conciliar os dias de tratamento com o trabalho. Sem poder pagar o aluguel, foi parar nas ruas. "Foi dando tudo errado."

Cobertinha diz que se curou da bactéria. Hoje, mora em uma casa de passagem, um albergue que acolhe pessoas em situação de rua perto da rodoviária, no bairro Nova Tietê. Lá, tem marmitas no almoço e no jantar — já era início da noite e um amigo com quem divide um dos quartos da casa chegou com duas quentinhas e sucos para compartilhar.

Ele estava improvisando músicas que lembravam trilhas sonoras de filmes, como "A Pantera Cor-de-Rosa". "Esse piano é um sonho pra mim", diz. "É um refúgio dos que partem e uma celebração dos que chegam."

A primeira vez que tocou um instrumento musical, conta, foi uma escaleta aos 9 anos. Depois, na casa dos 20, estreou no piano.

Decidiu aprender sozinho o que puder, viu vídeos no YouTube e agora tenta tirar músicas de ouvido. Já conseguiu, por exemplo, ensaiar um jazz, um blues, gospel, "Hallelujah", de Leonard Cohen, e "A Thousand Years", de Christina Perri. No futuro, gostaria de tocar em outros lugares além do terminal.

"Quero ser pianista e poder viver do que gosto. Se fosse pra definir em uma palavra o que significa estar aqui na rodoviária seria fé. Só toco nesse piano estourado graças a Deus, não teria outra palavra."

Piano na rodoviária do Tietê - Ester Caetano/UOL - Ester Caetano/UOL
De passagem por São Paulo, o cabeleireiro carioca Moisés Cristiano também parou para tocar
Imagem: Ester Caetano/UOL

'Uma palinha'

De passagem por São Paulo, o cabeleireiro carioca Moisés Cristiano, 39, parou ao ver Cobertinha ao piano. Depois, também fez seus acordes, tentando entoar hinos de louvor junto deles.

"Vi o pessoal tocando e perguntei se todos podiam tocar, porque nos shoppings, por exemplo, são só os contratados para tocar", conta o motoboy Allison Silva, 26, que chegou para entregar uma encomenda e lá ficou.

Piano na rodoviária do Tietê - Ester Caetano/UOL - Ester Caetano/UOL
Imagem: Ester Caetano/UOL

"Pode tocar", informou-lhe uma moça da lanchonete. Allison então esperou a vez para "dar uma palinha". "Devia ter um desses em vários lugares para ajudar no incentivo da música."

Ao redor, há quem passe rápido, de olho nas partidas de ônibus, mas também quem pare para ouvir — uns, em pé; outros se sentam como se estivessem em um concerto.

Foi o que fez a estudante Maria Carolina, 24, que esperava o embarque num ônibus de volta para casa, em Curitiba. Com um smartphone na mão, gravou a performance do motoboy.

"A música é absurda. Estava um pouco atordoada de me despedir de amigos e do caos de São Paulo. Só de ouvir o piano parece que me transportou para um aconchego. Vou mais tranquila para o sul."

Piano na rodoviária do Tietê - Ester Caetano/UOL - Ester Caetano/UOL
'Devia ter um desses em vários lugares para ajudar no incentivo da música', diz o motoboy Allison Silva
Imagem: Ester Caetano/UOL