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Cemitério da Saudade, em SP, tem ossadas expostas e covas reviradas

Terreno revirado dentro do Cemitério da Saudade, na zona leste de São Paulo - Camila Svenson/UOL
Terreno revirado dentro do Cemitério da Saudade, na zona leste de São Paulo
Imagem: Camila Svenson/UOL

Do TAB, em São Paulo (SP)

05/06/2023 04h00Atualizada em 06/06/2023 14h35

Não é preciso caminhar por muito tempo pelas quadras do cemitério da Saudade para esbarrar com jazigos depredados, covas reviradas e descaso. Dentre tantos problemas no terreno do cemitério, localizado no bairro de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, o mais chocante é um depósito de alvenaria próximo à entrada, cheio de ossadas humanas — todas sem identificação e separadas inapropriadamente, tornando quase impossível identificá-las.

A situação das ossadas, provavelmente criada por exumações que precisam ser feitas após três anos para liberar espaço, não é algo exclusivo do Cemitério da Saudade, mas chamou atenção de moradores da região que têm conhecidos e parentes ali enterrados.

Em maio, um vídeo mostrando a situação precária do cemitério e o evidente descaso com o direito funerário chegou aos gabinetes de Hélio Rodrigues e Simão Pedro, respectivamente vereador e deputado estadual pelo PT, que protocolaram uma representação na Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, pedindo a apuração das denúncias.

"Cidadãos na região de São Miguel Paulista viram uma construção com telhas quebradas. Quando se olha lá dentro, são ossadas, exumadas depois de três anos, que deveriam estar em sacos e identificadas", afirma o parlamentar. "Todas estão amontoadas, entre sacos rasgados, com os ossos soltos. Um desleixo total. Nós questionamos a empresa e o argumento é que eles não têm condições de fazer isso agora."

Segundo o Ministério Público, a representação foi recebida e está na fase de providências preliminares.

Desde março, a administração dos 22 cemitérios municipais foi oficialmente transferida para a iniciativa privada. A licitação dividiu os cemitérios em quatro blocos, assumidos por concessionárias diferentes. No caso do cemitério da Saudade, a empresa responsável pela zeladoria e administração do local é o Grupo Maya, que também assumiu o Campo Grande, Lageado, Lapa e Parelheiros.

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Depósito de alvenaria esconde milhares de ossadas empilhadas sem identificação
Imagem: Camila Svenson/UOL

Abandonado, mas cheio de gente

Cemitérios sempre receberam milhares de visitas em datas especiais como Dia das Mães e o de Finados. Os mais populares — como é o caso do da Saudade — têm alta rotatividade de velórios e enterros diariamente. "Aqui está cheio todos os dias", afirma uma funcionária do Saudade, que não quis se identificar. "Difícil é quando as salas para velório não estão todas ocupadas."

No dia em que o TAB visitou o cemitério, havia famílias inteiras driblando a terra remexida para deixar flores nos túmulos. Há quem faça reclamações nas redes sociais sobre a zeladoria do local, relatando os mesmos problemas. Não parece surtir efeito.

Depois que o vídeo do depósito circulou pelo WhatsApp, a administração do Saudade o cobriu com uma telha para evitar que visitantes encontrassem o material, exposto ao sol e à chuva. O armazenamento e identificação corretos dos restos mortais é um dos encargos das empresas que assumiram os cemitérios previstos no edital de licitação, que proíbe o empilhamento de ossos e exige que cada ossada seja armazenada individualmente e identificada com uma etiqueta resistente — mesmo em caso de ossadas não identificadas ou que não foram reclamadas pela família.

Procurada diversas vezes pela reportagem, a assessoria do Grupo Maya, empresa responsável pelo Cemitério da Saudade, não respondeu às perguntas sobre as ossadas e a situação dos jazigos. O espaço está aberto para atualizações.

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Cemitério da Saudade, na zona leste de São Paulo, tem covas reviradas e ossadas expostas
Imagem: Camila Svenson/UOL

Descaso de anos

A situação de abandono não está acontecendo somente em cemitérios distantes do centro expandido, que são bem mais simples e acessíveis. Em necrópoles antigas, onde foram construídos túmulos de valor artístico e histórico e onde descansam personalidades ilustres e famílias influentes, não é raro encontrar rastros de furtos e depredações de jazigos.

Em abril de 2022, o TAB apurou denúncias de túmulos violados e furtos de letras e placas de bronze e latão no Cemitério do Araçá (administrado pela concessionária Cortel). Não muito longe, o Cemitério da Consolação (administrado pela Consolare), um dos mais antigos da cidade, também já viu dias melhores. Algumas famílias, cansadas de terem de repor placas de metal com o nome dos parentes, deixaram até avisos suplicando para que não se furte nada.

Quem frequenta e estuda a história dos cemitérios de São Paulo alerta para uma deterioração ininterrupta da situação desses locais a partir de 2016, quando começou a ser discutida a privatização do serviço funerário na capital.

A historiadora Viviane Comunale faz parte da Abec (Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais), um grupo de acadêmicos que defende que os cemitérios virem espaço de visitação, como se fossem museus a céu aberto. Todavia, o que a historiadora diz testemunhar ao longo dos anos é um evidente abandono e precarização dos serviços funerários.

"A destruição dos jazigos e roubo de objetos não representa só um desrespeito com a história dos locais, mas também fere um direito básico de uma morte digna e da memória dos familiares", alerta Comunale.

Para o deputado estadual petista, o alegado sucateamento dos cemitérios municipais nos últimos seis anos pode ter sido uma tática. "Normalmente, quando você quer justificar a necessidade de privatização, você deixa o serviço sucatear para que a opinião pública conclua que é melhor privatizar. O que aconteceu foi um abandono. Não houve melhorias nos velórios, nada", afirma Simão Pedro.

ATUALIZAÇÃO

Depois da publicação da reportagem do TAB sobre a situação do Cemitério da Saudade, mais uma representação contra o Grupo Maya, empresa responsável pela administração de cinco cemitérios da cidade, foi protocolada no Ministério Público e no Tribunal de Contas do Município de São Paulo pedindo a inspeção do Saudade para apurar as denúncias sobre o armazenamento inadequado das ossadas e a destruição de jazigos.

Além da inspeção, a representação também pediu a aplicação de multa pelo descumprimento do Edital de Licitação e, caso comprovadas as violações, a anulação do mesmo edital que concedeu a empresa a adminsitração do local. O pedido foi movido pelo vereador Celso Giannazi, o deputado estadual Carlos Giannazi e a deputada federal Luciene Cavalcante, todos filiados ao PSOL.