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Ao som de 'Lança Perfume', maior zona de prostituição do país escolhe miss

Lauany Ribeiro, profissional do sexo no Jardim Itatinga, comemora o título de Miss Guereira 2023, realizado no Dia Internacional da Prostituta - Camila Svenson/UOL
Lauany Ribeiro, profissional do sexo no Jardim Itatinga, comemora o título de Miss Guereira 2023, realizado no Dia Internacional da Prostituta
Imagem: Camila Svenson/UOL

Do TAB, em Campinas (SP)

07/06/2023 04h00

O vai e vem pode até diminuir, mas nunca para. Nas ruas estreitas, carros de todos os modelos — dos populares aos importados — reduzem a velocidade para conversar com uma das dezenas de mulheres paradas no quarteirão. No banco de motorista, quase sempre tem um homem.

"É começo de mês, minha filha, aqui tá bombando", diz uma moça usando shorts e top dourado, com os braços cruzados para espantar o frio. Esse é só um mais fim de tarde no Jardim Itatinga, em em Campinas (SP). O bairro concentra uma das maiores zonas de prostituição da América Latina, e a maior do Brasil.

Naquela tarde de sexta-feira (2), no entanto, uma das ruas havia sido foi bloqueada para a realização de um evento que não era centrado nos milhares de clientes, mas sim nas prostitutas que vivem e trabalham no bairro. Era a 8ª edição do Puta Dei, celebrado no Dia Internacional da Prostituta, organizado pela Associação Mulheres Guerreiras, que funciona como um sindicato que atua na defesa dos direitos das profissionais do sexo do Jardim Itatinga e região desde os anos 2000. Só no bairro, são cerca de 1.700 trabalhadoras do sexo, entre mulheres cis, trans e travestis.

A sede da associação funciona em uma casa simples e acolhedora, na mesma rua onde as trabalhadoras atendem os clientes. Na casa, uma espécie de QG da profissão, elas retiram camisinhas, têm acesso a informações burocráticas para regularizar o trabalho e onde, simplesmente, podem parar para bater um papo.

A atração principal do Puta Dei foi o concurso "Miss Guerreira" — com direito à faixa, coroa e prêmio em dinheiro para quem fosse eleita pelos jurados. Dentro da associação, uma arara lotada de vestidos brilhantes estava à disposição das garotas do Itatinga para montar um look digno de miss.

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Faixa, buquê de flores e coroa aguardam o anúncio da vencedora do Miss Guereirra 2023
Imagem: Camila Svenson/UOL

Cis de um lado, trans de outro

A moça do top dourado é Marcelinha, 20. Pequena e tímida, ela interage com todo mundo com simpatia e um sorriso no rosto. Marcelinha nasceu não muito longe de onde está, no bairro de Campo Grande.

No Itatinga, mulheres trans e travestis só podem trabalhar em duas vias. O restante do bairro é atendido por mulheres cis. "É para não confundir, sabe? Às vezes o cliente acha que a gente é cis e fica nervoso", explica ela. "Aqui a rua é do c*", complementa, abafando o sorriso com a mão.

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Marcelinha trabalha como prostituta no Jardim Itatinga, bairro de Campinas (SP)
Imagem: Camila Svenson/UOL

"A associação é muito importante pra gente", conta Marcelinha. "A Betânia ajuda muito. Camisinha, documentação pra mudar o nome. Elas ajudam até a gente ter acesso à hormonização."

Betânia é Betânia Santos, 50, coordenadora da Mulheres Guerreiras que trabalha como prostituta há 32 anos e atua na associação desde 2006. De salto alto dourado e um vestido vermelho transparente, a militante e trabalhadora sexual começou o evento fazendo uma pergunta: "Alguém foi assediada aqui?" Todas as mulheres que vieram assistir o Puta Dei balançaram a cabeça, em um gesto negativo.

Santos tem três filhas e uma delas acompanhava a mãe, orgulhosa, segurando um pequeno cachorrinho no colo. Quando foi apresentada à plateia, foi chamada de "filha da puta" por Betânia.

"Muitas mulheres que trabalham aqui têm vergonha de aparecer. Sustentam a família e construíram a própria casa com o dinheiro que conseguiram aqui", complementa ela, sob aplausos. "Foi esse trabalho que me deu a garantia de criar essa filha da puta, essa filha da luta."

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Betânia Santos é prostituta há 32 anos e coordena a Associação Mulheres Guerreiras que luta pela regulamentação do trabalho sexual
Imagem: Camila Svenson/UOL

Luta pela conscientização

A Mulheres Guerreiras não é a única organização de defesa dos direitos e das profissionais do sexo, mas é uma das poucas que nutre uma relação próxima à CUT (Central Única de Trabalhadores). Mais especificamente, com a subsede de Campinas.

"Não é focada só na prevenção de ISTs", frisa Ivone Gosse, 55, militante e funcionária da CUT que frequenta o Itatinga. "Aqui o foco é dar humanização e apoio para que as trabalhadoras tenham condições dignas de trabalho."

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Ivone Gosse milita em prol dos direitos das profissionais do Jardim Itatinga e é funcionária da subsede da CUT em Campinas
Imagem: Camila Svenson/UOL

A prostituição é reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações. Por disso, uma profissional tem direito a regulamentar a atividade como qualquer outro profissional autônomo. No entanto, a precariedade do trabalho, somada à falta de informações e divergências no movimento feminista de reconhecer a prostituição como atividade profissional, dificulta a organização da classe.

"Ter de conscientizar o trabalho de qualquer categoria sobre seus direitos já é um trabalho difícil. Imagina fazer isso com uma categoria tão dispersa? Muitas migram muito, não se fixam, não criam raízes e relações de confiança no local", relata Ivone.

Alicia - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Alicia saiu de Fortaleza (CE) para trabalhar no Jardim Itatinga. Fã de anime e cultura oriental, escolheu um vestido mandarim para desfilar na passarela
Imagem: Camila Svenson/UOL

Segregação das 'mulheres de bem'

De certa forma, a história do Jardim Itatinga reflete exatamente os conflitos morais em torno da prostituição — que nunca foi proibida no país. Nos anos 1960, início da ditadura militar, foi feita uma operação pelas autoridades para varrer qualquer indício de prostituição do centro de Campinas.

A chamada "Operação Limpeza" foi pioneira não apenas na segregação de "mulheres da vida" das "mulheres de bem", mas também por ter criado o primeiro bairro planejado para prostituição no Brasil. Tudo que era reprovável foi transferido para os loteamentos no Jardim Itatinga. Os donos das "casas de tolerância" transferiram seus negócios para o bairro, e as mulheres que trabalhavam na rua foram sendo varridas até o local desejado.

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O movimento de carros é constante no Jardim Itatinga, onde é proibido fotografar sem autorização para não expor as trabalhadoras sexuais
Imagem: Camila Svenson/UOL

Quarenta anos depois da criação do bairro, nasceu a Associação Mulheres Guerreiras em 2006. Uma de suas fundadoras era Sandra Cabelão, uma prostituta trans conhecida como "Mãe da Rua" entre as trabalhadoras. Sandra foi assassinada em 2017, vítima de transfobia. Uma placa em homenagem à fundadora foi pendurada em uma das paredes da associação.

Desde a criação, a associação fez uma série de mediações para ajudar as trabalhadoras sexuais nos mais diversos casos — de calote à oobtenção do auxílio emergencial distribuído na pandemia. Assim quem começou a vacinação para covid-19, foi a Mulheres Guerreiras que trouxe o imunizante para o bairro. "Mais de 900 trabalhadoras se vacinaram", conta Santos.

Vermelho, a cor mais quente

A sala da associação está mais cheia. Agora, mais mulheres estão na frente da arara experimentando vestidos. Alfinetes eram o item mais pedido para ajustar as roupas no corpo das participantes do concurso Miss Guerreira. A cor vermelha foi a mais escolhida.

O desfile aconteceu sob o som de "Lança Perfume" de Rita Lee. Ao todo, oito trabalhadoras desfilaram na passarela, iluminada de vez em quando pelos faróis dos carros que entravam na rua desavisados. Todas as participantes eram trans. "As mulheres cis têm vergonha de aparecer", explica Betânia, sentada em uma das cadeiras de plástico. "Mas eu acho importante dar visibilidade para as trans. Elas não podem sair das ruas."

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Lauany Ribeiro, profissional do sexo que trabalha no Jardim Itatinga em Campinas (SP)
Imagem: Camila Svenson/UOL

A Miss Guerreira de 2023, Lauany Ribeiro, escolheu um conjunto vermelho com pedrarias para desfilar perante os jurados. Foi quase aplaudida de pé. A maquiagem felizmente resistiu ao banho de champanhe que tomou das amigas para celebrar a coroa.

Distante pouco mais de 100 metros da passarela, o tráfego de carros seguia intenso nas ruas principais, alheio ao que acontecia na associação. Aos poucos, as participantes do concurso trocaram de roupa para partir para mais uma noite de trabalho no Jardim Itatinga.