'Nesse momento, ninguém é ateu': o youtuber que grava as madrugadas do Rio
Avenida Presidente Vargas, Rio de Janeiro. O relógio da Central do Brasil mostra que já passam das 4h, com chuva e temperatura perto dos 20°C. Príncipe da Madrugada (como prefere ser chamado), 34, se despede depois de caminhar por três horas pelas ruas quase vazias do Centro. Ele é o homem por trás da câmera que registra, para o canal do YouTube Madrugada RJ, uma cidade pouco vista.
Com mais de 80 mil inscritos e quase 200 vídeos postados, o canal já fez passeios pela noite do Rio, de cidades da Baixada Fluminense e também de São Paulo. Tudo gravado a pé ou de bicicleta, com um celular e um equipamento estabilizador de imagem. "O que me fascina nisso tudo é passar por lugares que durante o dia tem milhares de pessoas e de noite não tem ninguém", conta ele, que grava, edita e divulga tudo sozinho.
As redes sociais também ajudam a propagar o canal. No Instagram, fotos de ruas às escuras movimentam a conta, seguida por quase 5.000 pessoas. No TikTok, um dos vídeos com mais de 2 milhões de views mostra ruas vazias e tem como legenda a frase "Nesse momento ninguém é ateu". Entre os comentários dos seguidores, elogios, sugestões de lugares que merecem uma visita noturna e palavras como coragem, medo e terror.
O começo
O canal foi criado em junho de 2021, mas a paixão pelo lado noturno vem dos tempos de serviço militar. "Assim que saí do quartel, eu quis explorar esse lance de trabalhar à noite pelo fato de ter mais vagas", conta. Entre os empregos, cumpriu expediente como conferente de carga de uma marca de refrigerantes.
Foi no deslocamento entre casa e trabalho ou nas horas de intervalo que a madrugada passou a se mostrar interessante para o youtuber. "Você começa a reparar nos detalhes, no silêncio. Um barulho de um passarinho, de algum animal. Aquilo ali foi me fascinando e acabei curtindo", recorda-se ele, que já conta 15 anos de andanças pela noite.
A ideia do canal surgiu durante a pandemia, e o cenário escolhido para a estreia foi Nova Iguaçu, cidade da Baixada Fluminense onde nasceu e vive com a esposa e dois filhos. O primeiro vídeo do canal, "todo tremido", diz ele, foi captado antes de comprar um equipamento estabilizador de imagem, mas o título da estreia daria o tom dos vídeos futuros: "Lugar mais perigoso do bairro da Luz".
Sem rosto nem nome
Quando a andança daquela madrugada começa, há garis nas ruas, boêmios em frente a um bar quase fechando e ninguém caminhando na calçada. Atrás do Museu de Arte do Rio, Madrugada aproveita e faz alguns cliques da Praça Mauá, também vazia.
A chuva faz com que uma parada em frente à Igreja São Francisco da Prainha dure mais tempo. É quando ele posa para algumas fotos, sempre mascarado. Ele não mostra o rosto porque quer que as ruas sejam as protagonistas. É por isso também que prefere esconder seu nome.
Já passa das 2h quando a avenida Presidente Vargas aparece pela primeira vez no trajeto, no cruzamento com a avenida Rio Branco. Atravessar seus 80 metros nunca foi tão fácil - só um ônibus cruza o asfalto àquela hora. Atrás da Igreja da Candelária, iluminada por uma luz verde, Madrugada faz novos cliques e também posa mais uma vez. Os registros feitos ao longo da caminhada são publicados depois em sua conta no Instagram.
Sonho e medo
Às 3h, já na praça Marechal Âncora, Madrugada RJ garante que não é preciso estar dormindo para sonhar. "É um prazer eu estar participando da madrugada, vivendo a madrugada. Se eu puder fazer isso diariamente, eu faço."
Antes de sair para suas andanças, Madrugada - que já frequentou de candomblé a cultos da Igreja Universal e hoje frequenta a umbanda -, acende uma vela e pede proteção. "Já fui enquadrado por milícia, por bandido, por polícia. Já perdi as contas", diz.
Ele também já presenciou cenas explícitas de violência, como na vez em que viu e gravou uma briga com faca. O vídeo foi publicado e viralizou.
"Minha intenção não é delatar ou expor ninguém. Como poderia ter problema para ambas as partes, achei melhor excluir", lembra. Foi o único vídeo do canal que ele publicou e apagou depois.
Andar pelas ruas durante a madrugada pode parecer absurdo em uma cidade com fama de violenta, mas isso não impede que o Príncipe da Madrugada propague sua filosofia sobre os prazeres do flanar noturno. "Se houvesse a certeza de que nada aconteceria, isso seria uma prática de bastante gente. Costumo falar que é um silêncio ensurdecedor, mas é algo que realmente vale a pena."
Há um ano, ele passou a ganhar com a monetização do canal Os valores variam entre US$ 80 e US$ 500, de acordo com a quantidade de publicações mensais e com as regras do YouTube.
Hora proibida
A noite nas ruas só é um território vazio para quem não a frequenta. Há pessoas dormindo sob as marquises dos prédios, vigias noturnos, um carro da Polícia Militar fazendo a ronda e andarilhos. Um deles é a única pessoa a interagir com a reportagem e Madrugada durante todo o roteiro, na altura da rua Acre, para pedir um cigarro - que ele não tinha. Em nenhum momento do itinerário, Madrugada deixou de levar seu celular à mão. (Ratos deram as caras algumas vezes.)
Depois de ver e viver in loco o que poderia ser um novo vídeo do canal Madrugada RJ, um detalhe volta à memória: em uma banca de jornal na Presidente Vargas, letras pretas em spray impõem a regra: proibido roubar. Coincidentemente, na manhã seguinte à aventura, um telejornal mostra uma série de roubos de celular à luz do dia na mesma avenida. No centro do Rio de Janeiro, a madrugada segue a regra à risca.
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