Seguindo 'efeito Central', bairro decadente de Lima vive boom gastronômico

Descobrir lugares bons, baratos e quase secretos para comer é o esporte mais praticado em Lima, cidade elevada ao posto de capital gastronômica da América Latina após a escolha do Central como melhor restaurante do mundo pelo ranking The World's 50 Best da revista Restaurant. O anúncio foi feito no último día 20 de junho.
Na esteira do sucesso da cozinha dos chefs Virgílio Martínez e Pía León, o bairro de Surquillo, uma ilha de decadência incrustada entre os melhores bairros da cidade, vive seu próprio boom gastronômico.
Surquillo cresceu à margem da vizinhança nobre: os bairros de San Isidro, San Borja e Miraflores -- e a 5 km de Barranco, bairro onde fica o Central.
A três quilômetros do "malecón" (orla) limenho, o cartão postal da cidade com vista para o Pacífico, o ambiente é caótico, feio e perigoso. Prédios sem reboco se misturam a cortiços, carros abandonados e moradores de rua. Há todo tipo de comércio e serviços: ambulantes, cassinos, lojas de autopeças, oficinas mecânicas, salões de beleza e consultórios médicos. Pequenos furtos e tráfico de drogas são constantes na região.
Esconderijos de delícias
Contra todas as expectativas, porém, Surquillo virou o destino da vez entre limenhos, influenciadores gastronômicos e turistas mais atrevidos. Em certo aspecto, a rusticidade do bairro joga a favor dos cozinheiros. Se, mesmo com esses pontos negativos, a comida dali atrai tanta gente, quem não fica tentado a experimentar?
No local abundam os "huariques", como os peruanos definem pequenos restaurantes com ótima comida, pratos fartos e bons preços, conhecidos pelo boca a boca: "esconderijos", numa tradução literal.
"É um espaço acolhedor, você pode conversar com quem está cozinhando, é outra forma de ver a cozinha", encanta-se a educadora e moradora do bairro Lorena Vernal, 31, que frequenta "huariques" desde criança.
Em Surquillo, come-se o Peru: há "cevicherías", "picanterías", "tabernas criollas", além de comida andina, marinha e amazônica. Há também muito espaço para a experimentação.
O cozinheiro Aurélio Exebio manteve seu pequeno negócio com um funcionário, uma mesa e dois balcões com banquetas praticamente vazio por quase um ano — até que o vídeo de uma cliente em seu "huarique" viralizou no TikTok.
Nas imagens, que acumulam hoje mais de 800 mil visualizações, Exebio preparava ostras numa churrasqueira colocada na calçada. No dia seguinte, a espera já chegava a duas horas e os clientes passaram de dez por semana para quarenta por dia.
Conhecedor do produto, ele apenas fornecia o marisco para hotéis e restaurantes caros da cidade. Até que teve um insight, ao estilo da famosa madalena do romance de Proust, "Em Busca do Tempo Perdido": ao saborear uma ostra, disse que foi "transportado" para uma cena de sua infância, no litoral norte do país.
"Pensei: isso é poderoso. Foi meu momento eureca. Eu já sabia que a boa cozinha e o bom insumo rememoram. E decidi que abriria uma 'delicatessen' popular", conta. No restaurante, as ostras foram acrecentadas ao ceviche e "peruanizadas" com coentro, ají e cebola roxa. Custam 17 soles (R$ 22,64).
Como teme abrir as portas à noite por causa da violência, o cozinheiro se prepara para inaugurar uma filial em Miraflores, que funcionará a partir das 19h. "Nenhum prefeito entendeu ainda que é possível converter Surquillo em um bairro turístico e gastronômico. O que falta é decisão, organização e segurança", pede.
Política e boa vizinhança
A fama de Surquillo rende dividendos até para os vizinhos. No Mercado 2, Rosman Pereda passou a servir quase 300 menus — com entrada, prato principal e bebida — depois que seu principal competidor, o La Huerta Chinén, um típico "huarique", foi revelado pela série "Street Food Latin América", da Netflix.
A localização, nesse caso, é estratégica. "Chega muita gente ao mercado por causa da série, mas, por falta de espaço, se sentam no meu restaurante", revela o cozinheiro, conhecido como Turquito Gastón. O sobrenome adotado é uma referência a Gastón Acurio, chef mais famoso do Peru, responsável por internacionalizar a culinária do país — volta e meia "cotado" para disputar a Presidência (o que sempre nega).
Comerciante no mercado e surquilhano de nascimento, Julio Morales, 70, credita aos festivais gastronômicos "Mistura", que Acurio organizou no Peru de 2008 a 2017, o aumento da competitividade e o consequente aprimoramento do setor. Para ele, o mesmo movimento ocorre agora em Surquillo. "Quando um negócio vai bem, logo abre outro igual em frente, depois mais um ao lado. A competição é assim, é como um vírus que vai se espalhando."
Também retratado na série, a cevichería Al Toke Pez fica na principal avenida de Surquillo. É, literalmente, uma portinha -- são as filas que ajudam a localizar o lugar. Do lado de dentro, uma área pequena com fogão no centro e barra ao redor, serve como carro-chefe o "trio marino", com ceviche, lula à milanesa e arroz com mariscos, por 25 soles (R$ 33).
Só a cozinha como preocupação
A expressão mais ouvida entre os cozinheiros e comerciantes é "menos é mais". Tomás Matsufuji, o chef do Al Toke, conta que não gosta da linha de restaurantes mais caros com muitos gastos e preocupações. "Não me importa o serviço. Eu queria um restaurante que se centrasse apenas na comida."
Mesmo tendo jantado na véspera no premiado Astrid y Gastón, restaurante de Gastón Acurio, o engenheiro espanhol Francisco Hermoso, 34, se mostrava mais animado na longa fila do Al Toke Pez. "Aqui é mais autêntico por não ser um lugar tão preparado para os turistas. É mais normal, mais Peru", resume.
O prêmio recebido pelo Central chegou ao coração dos peruanos como um título da Copa do Mundo. A comparação com o futebol não é aleatória. Os peruanos falam sobre comida com a mesma paixão com que se discute futebol no Brasil. Pesquisas apontam que a gastronomia é um dos maiores orgulhos nacionais.
Esse reconhecimento é um alento para o país que teve a maior taxa de mortalidade por covid-19 no mundo e enfrenta uma sequência de governos catastróficos.
No Cumpa, uma "taberna criolla" com proposta atual, o movimento disparou nos três dias seguintes ao anúncio. "Foi como uma celebração, as pessoas saíram para comemorar comendo comida peruana", lembra Andres Rejas, chef e sócio-proprietário.
"A comida peruana é uma comida feita com muita inteligência e criatividade por nossas avós, que conseguiam potencializar os sabores de insumos simples e acessíveis", exalta o engenheiro peruano Luis Llosa, 40. Para ele, a verdadeira cozinha do país não está nos preços estratosféricos do Central — onde o menu parte de 1045 soles (R$ 1.391) e está acima do salario-mínimo nacional, de 1.025 soles (R$ 1365).
"O ceviche não é um prato caro", opina Llosa. "É basicamente peixe e limão e ainda assim muito saboroso. Ir a um lugar onde te cobram mais de 1000 soles é muito caro. Isso apresenta de maneira equivocada a comida peruana."
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