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'No meu país, mulheres são menos que nada', diz afegã refugiada no litoral

Mahdia, Muhammad, Mahdi, Roya com o pequeno Kian no colo e o intérprete Navid: "Nunca pensei que o povo brasileiro pudesse ser tão carinhoso" - André Luiz Salibi/UOL
Mahdia, Muhammad, Mahdi, Roya com o pequeno Kian no colo e o intérprete Navid: 'Nunca pensei que o povo brasileiro pudesse ser tão carinhoso'
Imagem: André Luiz Salibi/UOL

Maurício Businari

Colaboração para o TAB, de Praia Grande (SP)

12/07/2023 04h01

Após dias, semanas e até meses acampados nos corredores do Aeroporto Internacional de Guarulhos, a vida dos refugiados afegãos hospedados na Colônia de Férias do Sindicato dos Químicos, em Praia Grande, no litoral sul paulista, é marcada por emoções ambíguas.

Por um lado, as famílias trazem consigo lembranças indeléveis da violência imposta pelo Talibã após a retomada do comando do Afeganistão, em 2021. Por outro, apesar da tumultuada chegada, dizem-se gratos pela acolhida dos brasileiros.

O tempo em que a falta de higiene adequada no aeroporto causou um surto de sarna humana entre os membros do grupo passou. E quando, enfim, o Sindicato dos Químicos concordou em recebê-los na colônia de férias da entidade, a pedido do governo federal, a prefeitura de Praia Grande quase os impediu de entrar na cidade. Só após a promessa de cumprimento de uma série de exigências feitas pela prefeita Raquel Chini (PSDB), os ônibus levando 128 imigrantes conseguiram chegar ao destino — sob os aplausos de moradores vizinhos à sede da entidade.

Medicados, os afegãos deram entrada nos documentos para permanência no Brasil e ganharam quartos com camas, banheiro e até uma pequena cozinha.

Afegãos na Praia Grande - André Luiz Salibi/UOL - André Luiz Salibi/UOL
'Ouvíamos dizer que o Brasil era perigoso, mas nada podia ser comparado ao que vivíamos', diz Muhammad Rostami
Imagem: André Luiz Salibi/UOL

Alívio e gratidão

O TAB visitou a colônia sábado (8) e conversou com os imigrantes, com a ajuda de um intérprete capaz de traduzir as suas histórias, contadas em persa, para o inglês. Crianças corriam e brincavam nas áreas externas, jovens e adultos sorridentes caminhavam pelos corredores tentando se comunicar por gestos com os voluntários e empregados da colônia. E as mulheres, cobertas com suas roupas típicas, caminhavam pelo calçadão da orla da praia.

Muhammad Hamid Rostami, 35, sargento treinado nos EUA, atuou por muitos anos nas Forças Especiais do Afeganistão. Ele conta que, quando o Talibã reconquistou o poder do país, foi preso e espancado diariamente durante três meses. Membros do regime talibã queriam obrigá-lo a dizer onde as Forças Armadas Afegãs escondiam armamentos.

"Antes do Talibã reassumir o poder, a vida no Afeganistão era normal. Nós tínhamos algumas lutas internas, fora da capital (Cabul) e nossa missão era manter a paz em nosso país", lembra ele. "Eu passava os dias em campanhas militares, mas conseguia ficar com a minha família às quintas e sextas-feiras. Mas daí veio o Talibã e mudou tudo novamente", lamenta o sargento.

"Passamos 20 anos, desde 2001, tentando recuperar nossa democracia, reconstruir nosso país, diz. "Mas em 2021 não sabemos o que aconteceu. O que parece é que nosso presidente 'vendeu' o país e nós perdemos tudo. Trabalho, casa, a liberdade como cidadãos."

Afegãos na Praia Grande - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Sargento treinado nos EUA, Rostami (último à dir.) atuou por anos nas Forças Especiais do Afeganistão
Imagem: Arquivo pessoal

Rostami fugiu com a esposa, Zahra Jafari, 35, que estava grávida e o filho de 12 anos para o Irã, onde ela deu à luz uma menina. Lá a família permaneceu escondida durante um ano e três meses até surgir a oportunidade de vir para o Brasil. Zahra, que atuava como repórter de uma emissora de TV em Cabul, concordou em trazer a família assim que os vistos de imigração foram obtidos, com a ajuda do congressista americano Dylan Nurse.

"Nós ouvíamos dizer que o Brasil era perigoso, que tinha gângsters, traficantes e outros perigos, mas nada podia ser comparado ao que estávamos vivendo nas mãos do regime talibã", completa Rostami: "Quando chegamos, encontramos um povo amável, generoso, disposto a ajudar pessoas como nós. Espero poder aprender a língua (português) e encontrar trabalho. Nosso desejo é poder morar aqui no Brasil."

Afegãos na Praia Grande - André Luiz Salibi/UOL - André Luiz Salibi/UOL
'Sobrevivi a três ataques suicidas. A vida se tornou um pesadelo', conta o ex-apresentador de TV Farid Toghari
Imagem: André Luiz Salibi/UOL

Jornalismo proibido

O editor e apresentador de TV Farid Toghari, 36, conta que já havia sido vítima de perseguição por parte do próprio governo do Afeganistão por críticas feitas por ele, antes mesmo do Talibã reassumir o poder. Empregado na emissora privada Sadai Hamowant TV, ele conta que, agora, o jornalismo profissional foi praticamente proibido no país.

"Forças políticas de outros países influenciavam o governo e havia muita corrupção acontecendo", lembra ele. "Quando o Talibã tomou o poder, nosso presidente, Ashraf Ghani, fugiu do país. Ele tentava um acordo, mas falhou. Os políticos e as forças internacionais que comandavam o Afeganistão não tinham fé no país, no nosso povo. E assim abriram caminho para a volta do talibã", lamenta.

Toughari lembra que estava na redação editando uma matéria e ouvindo música estrangeira no rádio, quando o local foi invadido por fanáticos armados com metralhadoras e fuzis. Ele foi espancado e avisado de que não teria mais o direito de divulgar o que acontecia nem de ouvir aquele tipo de música.

Afegãos na Praia Grande - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Toghari na bancada da Sadai Hamowant TV: 'Agiam com violência quando dizia que era jornalista'
Imagem: Arquivo pessoal

"Tudo o que era permitido pelo governo de Ghani se tornou proibido pelo Talibã. Grupos ligados ao regime me perseguiram nas ruas e agiam com violência quando eu confirmava que era jornalista. Sobrevivi a três ataques suicidas. Nossa vida se tornou um pesadelo. Viver no meu próprio país já não era mais possível."

Um desses ataques deixou marcas em sua cabeça, na altura da têmpora esquerda. Após meses foragido em países como o Irã e a Síria, o jornalista solicitou refúgio ao Brasil para ele, sua esposa e os dois filhos pequenos, de 2 e 4 anos. Apesar das barreiras da língua, Toughari diz estar decidido: providenciará o visto de residência no país.

"Estamos muito cansados, traumatizados. As marcas da violência que sofremos não ficam só no corpo. Mas quando chegamos aqui, nessa terra abençoada, nos sentimos seguros pela primeira vez. Todos têm sido muito generosos conosco, nos sentimos abraçados. Nos tratam como se fôssemos já brasileiros", elogia o jornalista, que se declara fã do escritor Paulo Coelho.

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'Eu estava na universidade e aprendendo a pilotar aviões. Tudo isso acabou', conta Mahdi Sadat
Imagem: André Luiz Salibi/UOL

Com a roupa do corpo

Mahdi Sadat, 28, acostumou-se desde pequeno aos luxos que o pai, um general da NDS (National Directorate of Security) proporcionava à família. Ele conta que estudou nas melhores escolas e viajou para diversos países. Morava em uma casa de alto padrão, tinha o seu próprio carro e se vestia com roupas de grife.

Com a ascensão do talibã, sua vida "desmoronou", como diz. O Talibã confiscou todos os bens da família, incluindo contas em bancos. Sadat conseguiu vir para o Brasil, mas seus pais ainda travam uma batalha burocrática para conseguir o visto de refugiados. "Eu estava na universidade e aprendendo a pilotar aviões. Nossa vida era boa", lembra ele. "Tudo isso acabou. Quando o Talibã descobriu onde estávamos escondidos, no Irã, tive que fugir só com a roupa do corpo".

A NDS foi dissolvida pelo Talibã após a tomada do controle de Cabul, em agosto de 2021. A agência trabalhava em estreita colaboração com o Reino Unido e os EUA, realizando operações de vigilância contra o Talibã e a Al-Qaeda.

"Permanecer lá seria uma sentença de morte", resume Sadat. "Nós tentamos fugir para os EUA, em 2021, mas o avião foi interceptado quando estava prestes a decolar. Conseguimos ir para o Irã, onde vivemos graças à ajuda de amigos de meu pai. Mas as coisas foram ficando difíceis e chegou a hora de fugirmos para um país distante. Então surgiu a chance de vir ao Brasil."

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'Tudo se tornou proibido para as mulheres, além de casar e gerar filhos', diz Roya Sarwari
Imagem: André Luiz Salibi/UOL

Liberdade para as mulheres

Muhammad Navid Haidari, 39, vem atuando como intérprete para os compatriotas. Ele, que já trabalhou como tradutor em missões da Otan antes da volta dos talibãs ao poder, também teve que se esconder no Irã com a esposa e os quatro filhos quando o governo caiu.

Ao lado dele, sua esposa Roya Sarwari, 35, conta que está sendo medicada com antidepressivos e ansiolíticos. Ela não consegue dormir à noite por conta dos pesadelos. Sente-se culpada por ter deixado os pais, com quem a família vivia há 17 anos, sozinhos no Afeganistão. E luta agora para trazê-los também ao Brasil.

Hospedados em um quarto da colônia com os filhos Mahdi, 12, Mahdia, 11, Muhammad, 8 e Kian, de apenas um ano e cinco meses, Roya conta que trabalhava em um banco e levava uma vida feliz. Apesar das restrições impostas pela religião muçulmana às mulheres, ela diz que foi capaz de experimentar um pouco de liberdade e respeito durante o período de paz no Afeganistão.

Conforme as leis muçulmanas, todo homem pode ter até quatro esposas, se for capaz de mantê-las financeiramente. E, de acordo com alguns grupos mais radicais, como o Talibã, poucas são as mulheres com direito a aprender a ler e estudar. Trabalhar, então, é considerado uma exceção por esses grupos.

"Tudo no meu país se tornou proibido para as mulheres, além de casar, gerar filhos e cuidar da casa. É como viver numa prisão", diz ela. "Estou há pouco tempo no Brasil, mas já aprendi que aqui as mulheres são livres, fazem o que querem e quando querem. Lá nós somos menos que nada. Minha mãe viveu como se fosse nada e minha filha ia viver também como se fosse nada. Aqui tenho esperança de que ela terá a chance de ter uma vida de verdade."

O marido, Navid, diz apoiar o pensamento da mulher e ter se afastado há muito dos dogmas conservadores da religião muçulmana. Ele diz que o casal e os filhos, quando encontram sinal de wi-fi disponível, assistem aulas de português no YouTube para aprender o básico da língua.

"Queremos ficar aqui no Brasil. Eu já era um apaixonado pelo futebol brasileiro desde pequeno. E sempre imaginei como seria morar aqui. Mas nunca pensei que o povo brasileiro pudesse ser tão carinhoso, generoso e acolhedor", afirma ele. "Tivemos problemas quando chegamos, tudo bem. Mas nada, nada se compara ao pesadelo que é viver sob um regime totalitário com base na religião."

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Valmir Olivieri, de camisa vermelha, e família: 'Estamos dando as boas-vindas a eles'
Imagem: André Luiz Salibi/UOL

'Algo além da simpatia'

Vizinhos da colônia de férias ouvidos pelo TAB disseram não se incomodar com a presença dos estrangeiros. Ao contrário, alguns chegam a abordar os imigrantes que encontram caminhando nas ruas do bairro Jardim Solemar oferecendo ajuda, como roupas e alimentos.

É o caso do aposentado Valmir Gonçalo Olivieri, 65, morador do bairro há 12 anos. "Eu percebi [pelas roupas] que eram de fora, de outro país, e me ofereci para ajudar. Eu não falo a língua deles, mas acho que eles entenderam que estamos dando as boas-vindas a eles", conta o aposentado, que trabalhou como técnico de laboratório na USP (Universidade de São Paulo).

O também aposentado Cláudio Tadeu dos Santos, 65, concorda com o vizinho. Além de oferecer ajuda, ele chegou a jogar bola com os jovens afegãos na praia, sábado. "São pessoas que merecem todo o nosso cuidado e o nosso respeito. Temos que tratar deles como gostaríamos de ser tratados", diz.

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Gustavo Hernandes (no centro) e o grupo evangélico: 'Não adianta só chegar, fazer vídeo e desaparecer'
Imagem: André Luiz Salibi/UOL

Um grupo formado por jovens de uma igreja evangélica de São Paulo visitou o local também no sábado, para "rever os amigos". O grupo atuou como voluntário para ajudar os imigrantes acampados no aeroporto, organizando banhos, distribuindo mantimentos, roupas de cama e colchões.

"Quando eles vieram para a Praia Grande, nos organizamos para fazer essa visita", diz o auxiliar de exportação Gustavo Hernandes de Sousa, 22. "Fizemos amizade. Então a gente quer ter certeza de que eles estão bem, sendo bem cuidados. A gente tem que lembrar que, antes de tudo, antes de serem refugiados, estrangeiros em situação difícil, eles são seres humanos."

Para Gustavo, está mais do que na hora dos governos, em todas as esferas, prepararem-se melhor para o recebimento de refugiados. E diz esperar dos brasileiros algo além da simpatia. "Não adianta só chegar junto, abraçar, fazer vídeo e desaparecer. Precisamos de pessoas engajadas em um trabalho humanitário sério. Essas pessoas precisam de nós."