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'Nunca passei tanto frio': por que casas no Brasil não têm conforto térmico

O professor Aloisio Schmid em frente à sua janela isolada com plástico bolha: "Resultado notável" - Arquivo pessoal
O professor Aloisio Schmid em frente à sua janela isolada com plástico bolha: 'Resultado notável' Imagem: Arquivo pessoal

Sandoval Matheus

Colaboração para o TAB, de Curitiba

08/07/2023 04h01

Em 25 de junho, no início da onda de frio que não larga mais o país, uma postagem do advogado Jefferson Nascimento no Twitter esquentou a discussão: "Há uns quinze anos, conversando com um professor alemão, natural de Kiel (norte da Alemanha)", escreveu o doutor em direito internacional pela USP para seus mais de 130 mil seguidores, "achei graça quando ele disse que nunca tinha passado tanto frio na vida quanto durante uma visita a Curitiba".

Nos comentários, usuários da rede social que moram em diversas cidades do sul concordaram com o professor alemão. Um deles disse ter passado menos frio nos 12 anos que viveu na Rússia. Outra, que um cunhado suíço sofria mais dentro de casa em São Paulo do que em sua terra natal. Outro, ainda, que enfrentou -20ºC em Boston, mas congelava mesmo em Floripa.

O que explica esse desconforto das edificações brasileiras?

As respostas são culturais e econômicas. Antes de mais nada, pesa a extensão territorial, percorrendo diversas zonas climáticas, de um país que acabou padronizando mais do que deveria seu regramento para edificações.

O Brasil tem uma norma de desempenho, a NBR 15575, atualizada em 2013 e em 2021, que em teoria estabelece diretrizes de conforto térmico que variam de região pra região. "Mas ela é o mínimo do mínimo", diz Rafael Passos, 44, vice-presidente do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil).

Como essas regras foram pensadas a partir do ponto de vista de um país tropical, elas prejudicam mais a região sul, que fica em zona subtropical, onde as temperaturas variam agudamente de uma estação para a outra. O problema, no entanto, é geral. "O que você constrói no cerrado não necessariamente vai ser adequado ao norte, mais úmido", explica Passos.

Conforto térmico - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
'Arquitetura é vista como supérflua', diz Rafael Passos, do Instituto de Arquitetos do Brasil
Imagem: Arquivo pessoal

Não é questão de tradição

A conta não estaria, porém, nas escolas de arquitetura que se enraizaram no país. O vice-presidente do IAB cita como exemplo o marco inicial da arquitetura modernista brasileira, o Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, inaugurado na década de 1940: além dos jardins, desenhados pelo renomado paisagista Burle Marx, o prédio conta com o chamado brise soleil, um dispositivo arquitetônico que impede que o sol penetre diretamente nos ambientes.

"O conforto e a funcionalidade sempre foram uma preocupação das escolas de arquitetura", garante ele. Com o tempo, no entanto, a prática brasileira acabou por deixar esses princípios de lado. Principalmente entre os anos 1980 e 1990, o perfil das construtoras nacionais muda. Elas se agigantam e os arquitetos passam a perder espaço de decisão para os corretores de imóveis.

"No Brasil, a arquitetura é vista como coisa supérflua", lamenta Passos. "Na Espanha, você discute arquitetura na mesa do bar, como a gente discute música. Na Argentina, tem cadernos de arquitetura de qualidade que saem em grandes jornais. Quando vão construir, mesmo pessoas que classe média baixa investem em um arquiteto, porque reconhecem a importância."

O "boom dos ar-condicionados", a partir dos anos 2000, também teria influenciado o aparente desprezo nacional por projetos que pensem o chamado "conforto térmico" das edificações. Isso, porém, pode estar mudando. "A gente aposta muito no debate das mudanças climáticas. Não vai bastar apenas mudar a matriz energética, será preciso considerar outros fatores, como construções mais inteligentes, que consumam menos energia."

Para a professora e doutoranda em arquitetura pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Luize Andreazza Bussi, 49, "por mais que algumas pessoas neguem, elas estão sentindo na pele os efeitos das mudanças climáticas. Por isso, a nova geração está mais preocupada com questões como conforto ambiental, principalmente quando falamos de casas de alto padrão."

Conforto térmico - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
A professora Luize Bussi: 'A nova geração está mais preocupada com questões como conforto ambiental'
Imagem: Arquivo pessoal

Custo muito alto

Um entrave claro para a democratização do conforto térmico nas residências é o custo. Nesse quesito, um ponto crucial da obra são as esquadrias, que fecham os vãos de portas e janelas. No Brasil, o material mais utilizado nelas é o alumínio, um isolante térmico bem menos eficiente que o policloreto de vinil — ou PVC, muito empregado na Europa, mas que aqui é visto apenas em casas de altíssimo padrão.

O preço das molduras de PVC pode ser até três vezes maior que o das mais populares. "Esquadrias de alumínio não pesam tanto no preço global de uma obra, mas quando você opta pelas de PVC, elas vão pro topo da lista", confirma Anna Paula Araújo, 41, gerente de incorporação da Construtora Equilíbrio, de Curitiba.

Tanto que a construtora, há 50 anos no mercado, inaugurou apenas em 2019 o seu primeiro empreendimento com janelas vedadas por vinil.

Outros recursos para erguer casas termicamente confortáveis no inverno seriam a colocação de vidros duplos, que ajudam a manter os ambientes aquecidos, e a substituição dos blocos de concreto por blocos de cerâmica nas paredes, que dificultam a chamada "transmitância térmica".

É complicado, no entanto, calcular o quanto mudanças como essas somariam no orçamento final de uma obra. "Essa resposta somente é possível caso a caso", diz o professor de arquitetura da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Aloisio Leoni Schmid, 55, que pesquisa conforto ambiental. "Hoje temos a técnica e materiais disponíveis. Entretanto, vivemos uma realidade dramática de preços muito altos."

Conforto Térmico - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
O médico Homero Palma, para quem os malefícios de uma casa fria vão além de gripes e resfriados
Imagem: Arquivo pessoal

O 'sistema molhado'

Impera no Brasil o que, no jargão técnico, chamam de sistema de construção "molhado", da alvenaria, que não exige mão de obra muito especializada. No sistema a seco, com placas de "drywall", mais utilizado no exterior, questões como isolamento térmico e vedação costumam ser mais consideradas.

"No sistema molhado, mais rudimentar, feito pela maioria da população, é muito fácil deixar passar essas questões. Em parte pelo valor agregado das soluções e em parte por desconhecimento de alternativas existentes", analisa Luize Bussi.

A falta de projeto faz com que muitas vezes também não se leve em conta a posição das casas e apartamentos em relação à incidência solar. Na região sul, o ideal é que as edificações estejam voltadas para o norte, a fim de receber o sol da manhã, para aquecer os espaços.

Questão de saúde

O médico da família e professor da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) Homero de Aquino Palma, 41, afirma que os malefícios à saúde que podem ser causados por uma casa muito fria vão além de gripes e simples resfriados.

Quando o corpo é exposto ao frio, acaba havendo a constrição dos vasos sanguíneos, o que aumenta a pressão arterial — um problema principalmente para quem já sofre de hipertensão. "Existem estudos que mostram que os índices de infarto aumentam no inverno", exemplifica.

Ambientes mais frios também estimulam as pessoas a tomar banhos quentes e demorados, o que piora a situação de quem sofre de doenças de pele, como a dermatite seborreica e as dermatites atópicas.

Nessas casas, os moradores ainda tendem a contrair mais a musculatura, um mau negócio para pacientes com quadro de dor crônica.

Enquanto o inverno está aí e a reforma não vem, algumas dicas ajudam na hora de aquecer a casa, como tapetes no chão e mantas sobre sofás e poltronas. Mas o professor Aloisio Schmid compartilha um truque de ouro: "Uma ajuda expressiva para manter o ar interno mais quente é obtida com plástico-bolha usado em embalagens, aquele de bolhas pequenas, de cerca de um centímetro", ensina.

É preciso recortar o material no formato de cada peça de vidro da janela e colar com fita adesiva nas esquadrias. "O aspecto é estranho no início, mas a gente se acostuma. Em especial em apartamentos, dá um resultado notável."