Cidade goiana supera estigma do césio e cresce puxada por agro e indústria
Uma cidade pacífica, pequena e arrumada. Assim é vista hoje Abadia de Goiás, município a 10 quilômetros de distância da capital Goiânia. A cidade — onde foram depositadas, em 1987, duas caixas de concreto com mais de 6.000 toneladas de rejeitos do césio-137, material radioativo responsável pela morte de quatro pessoas em Goiânia — foi a que mais ganhou novos domicílios proporcionalmente, em todo o País, com aumento de quase 200%, segundo o Censo 2022.
O estigma da contaminação radioativa aparentemente passou. "O [acidente com] césio aconteceu há várias décadas, a gente nem se lembra mais disso", justifica o corretor de imóveis José Mamede, 62, natural de Aparecida de Goiânia e morador de Abadia há quatro anos.
O estande para venda de lotes onde Mamede trabalha fica exatamente na entrada da cidade, a menos de um quilômetro do depósito onde foram dispensados os materiais contaminados há quase quatro décadas. "O que atrai as pessoas para aqui é a qualidade de vida, a tranquilidade. Em Goiânia, você fica no meio de todo aquele barulho, o fuzuê dos carros. Aqui, se a pessoa quiser, pode até dormir com a porta aberta", diz o corretor, que está negociando 5,8 mil lotes para venda no município.
Nova industrialização
Apesar da proximidade entre as cidades, que faz com que o traslado entre uma e outra se pareça mais com um passeio entre bairros, o contraste entre Goiânia e Abadia de Goiás é perceptível. Quanto mais o visitante se aproxima da cidade onde foi depositado o césio, mais é visível o movimento industrial que ocorre naquela direção.
Caminhões, galpões e novas fábricas aparecem. São eles a fonte de renda que atrai novos moradores para Abadia. Para o comerciante José Francisco Ferreira Júnior, 54, o crescimento ocorre porque "Abadia foi o único lugar que restou, nas bordas de Goiânia, para crescer".
"Se você analisar a região metropolitana da capital, o único lugar que sobrou [para se desenvolver] foi aqui", afirma Ferreira. O comerciante, morador da cidade há 12 anos, também acredita que a má imagem devida ao césio-137 foi superada: "Meu filho é formado em física e química. Ele mesmo explica que não tem o menor perigo morar aqui."
Em busca de dinheiro e custo baixo
O diretor-executivo do Instituto Mauro Borges de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (IMB), Erik Figueiredo, explica que a região metropolitana de Goiânia cresceu economicamente como um todo. E o que os dados mostram sobre Abadia de Goiás é um salto de quase 300% do chamado valor adicionado do município em um comparativo entre 2010 e 2020. "Esse crescimento, na verdade, é anormal [para mais] porque reflete a chegada de novas empresas a Abadia", diz. "E explica a maior oferta de emprego."
Para o diretor executivo do IMB, o aumento de 200% no número de domicílios reflete um movimento populacional para onde está o capital. "O Censo 2022 revelou que a população tem buscado lugares com sucesso econômico. Se você tem uma perspectiva de crescimento econômico, desenvolvimento e emprego formal, mais pessoas são atraídas para essas regiões. E um esvaziamento das cidades com menos oportunidades."
Ao mesmo tempo, completa Figueiredo, esse crescimento nas margens de Goiânia, na chamada Região Metropolitana, se deve à busca por maior qualidade de vida e preços menores. "Isso é uma tendência. Às vezes, as pessoas preferem morar mais distantes, mas em um condomínio [seguro] ou em uma região mais calma. Figueiredo acrescenta que o crescimento do agro no geral fez com que estados como Goiás tivessem o aumento populacional registrado na pesquisa.
'Ninguém ficou tranquilo'
Durante a visita ao município, ao longo da tarde do último domingo (2), a reportagem do TAB saiu em busca de pessoas que chegaram à cidade antes e depois do incidente radioativo. Uma das antigas moradoras de Abadia de Goiás é a aposentada Divina Santana, 70, que estava sentada em frente à sua casa para conversar com a vizinha Maria Sueli Barros, 62.
Na época em que o material foi dispensado ali, relembra Divina, "ninguém ficou tranquilo". "Não tivemos nenhuma reação, tudo seguiu normalmente, mas a gente ficou daquele jeito, né? Preocupado", conta.
"Eu lembro que, quando a gente ia pra Goiânia buscar emprego, não podia falar que morava em Abadia. Se falasse que morava aqui, vixe... A pessoa não contratava de jeito nenhum", relembra Maria Sueli. Contudo, concordam ambas, o período de estigmatização da cidade mudou rapidamente, pois as informações sobre o material radioativo sempre foram claras e o acompanhamento da saúde da população garantiu maior tranquilidade. "Esse césio não dá nada pra gente", completa ela.
Monitoramento por 300 anos
O material depositado em Abadia de Goiás fica no Parque Estadual Telma Ortegal, às margens da BR-060, onde foi construído o CRCN-CO (Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste), vinculado à CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear).
O centro é responsável pela manutenção da área onde os rejeitos foram dispensados e promover pesquisas relacionadas à radioatividade na área ambiental.
A escolha do local foi feita considerando outros pontos no Brasil, enquanto o lixo contaminado era mantido temporariamente em Abadia. No entanto, o que era temporário se tornou permanente — e a justificativa dos técnicos foi evitar um novo deslocamento do material. Livros, utensílios domésticos, fotografias, roupas, brinquedos e diversos itens nos quais os aparelhos de medição registravam radioatividade foram concretados e enterrados.
O depósito terá que ser monitorado por 300 anos. Ao final de cada ano, é gerado um relatório sobre as condições de segurança. "Os dados apresentados até o momento indicam que o depósito vem operando normalmente, sem impacto para o meio ambiente e para o público, demonstrando sua segurança", afirma a assessoria da CNEN.
Passado soterrado
O acidente, que ocorreu após dois catadores encontrarem um aparelho de radioterapia abandonado, desmontarem o equipamento e venderem para um ferro-velho — onde um "material brilhante" foi manipulado por catadores e ocasionou a morte de quatro pessoas, contaminando outras 240 — obrigou o monitoramento de mais de 2.000 quilômetros de malha viária. A caixa contendo o material foi coberta com camadas de brita, areia, terra e grama.
Assim, soterrada, parece estar também a estigmatização de Abadia de Goiás como local perigoso. Resta, como percepção detectada pelo último Censo, a imagem de um município tranquilo, com segurança, ideal para se morar com filhos pequenos ou passar os últimos anos de vida. A cidade espera, para o próximo Censo, um novo salto na quantidade de moradores.
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