Movimento 'Carajo' e 'defesa da democracia': um rolê pelo Foro de São Paulo
De chapéu Panamá e apoiado numa muleta, Guillermo Santana Sánchez se aproxima da recepcionista, no mezanino do hotel San Marco, em Brasília. Ao lado do companheiro Freddy Veloz, busca seu nome na lista de convidados do 26º Foro de São Paulo, que acontece até domingo (2). Não encontra. Inquieta-se com a demora, até que a atendente acha o registro. Ali está: Sánchez, representante do movimento equatoriano AVC (Alfaro Vive, ¡Carajo!). Em bom português: Alfaro Vive, Caralho!.
Inspirado no ex-presidente equatoriano José Eloy Alfaro — general do Exército que combateu forças políticas conservadoras por mais de 30 anos e que foi assassinado em 1912 —, o grupo está ligado a uma "ala subversiva e armada da esquerda" equatoriana nos anos 1980, explica Sánchez. Mas as coisas mudaram, ele garante: "Hoje, somos uma organização política pacífica. O movimento entregou as armas nos anos 1990 e agora defende a democracia e o fim do imperialismo americano."
A dificuldade de andar não intimidou o velho Sánchez a caminhar pelo mezanino do luxuoso hotel San Marco nesta quinta-feira (29). Tira fotos e faz selfies, como um turista a participar, pela primeira vez, do encontro que reúne dezenas de partidos de esquerda de todos os matizes da América Latina e do Caribe. Todos, mesmo.
Cerca de 300 convidados internacionais se reuniram para acompanhar a abertura do Foro, que voltou a ser realizado após a pandemia. Depois de quatro minutos de cumprimentos oficiais e agradecimentos, o presidente da Fundação Maurício Grabois, Adalberto Monteiro, uma organização que se define como "espaço do pensamento marxista e progressista", enumerou as consequências do "neocolonialismo dos Estados Unidos da América" sobre os países latinos, massacrados pelo "imperialismo estadunidense".
'Romper a caricatura'
Atento ao discurso, o jovem Jackson Ribeiro acompanhava as falas — que acusavam os EUA de frearem o crescimento regional, enquanto o socialismo da China, ao lado de países como Rússia e Cuba seriam alternativas para a cólera financista do Tio Sam.
Com 29 anos, Jackson ainda não era nascido em 1990, quando o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva e o ditador cubano Fidel Castro realizaram o primeiro encontro do Foro de São Paulo, reunindo 48 partidos na capital paulista para debater a crise mundial do capitalismo. O assunto, no entanto, sempre o encantou. Neste mês de junho, que estranhamente trouxe chuva à capital federal, Jackson, que é aluno de doutorado da Faculdade Federal do ABC, em São Paulo, viajou a Brasília para acompanhar o encontro.
"Estudo a economia política do Foro de São Paulo e suas estratégias. É um espaço interessante de debate das esquerdas latino-americanas, para romper os obstáculos que impedem uma integração mais firme na região", diz ele, que é filiado ao PT.
"A extrema-direita acabou criando uma caricatura do Foro de São Paulo. Estudar o foro é contribuir para romper essa caricatura e mostrar a verdade. Este não é um espaço conspirativo, nem secreto. É um ambiente aberto, amplo e democrático para o debate de ideias sobre os rumos que a América Latina tem que assumir de forma soberana e independente."
As palestras, realizadas numa sala de tapete, cortinas e palanque vermelhos, no espaço batizado de "Salão Botticelli" — em homenagem ao renascentista italiano que pintou, entre outros, um afresco na Capela Sistina — duraram toda a manhã. A tranquilidade só foi quebrada horas depois, quando se ouviram gritos vindos da rua.
Patriotas no pé de manga
Com faixas nas mãos e um megafone, um pequeno grupo de 20 manifestantes berrava palavras de ordem, com insultos a Lula, Maduro e o comunismo, dizendo que "o Brasil não é palco para ditadores".
Acuados pela polícia e a segurança que cercavam o hotel — afinal, o presidente Lula confirmara presença no evento da noite —, os membros do movimento "Conservadores de Brasília" julgaram, por bem, ficar debaixo de um pé de manga, a cerca de 30 metros da entrada do San Marco. De lá, xingavam em português e espanhol.
"Estamos aqui para dizer em alto e bom som que o Brasil e Brasília não são palco para ditadores", disse ao TAB o publicitário Evandro Araújo, membro do grupo que se apresenta como um "movimento apartidário". O fôlego foi curto e os rebelados dispersaram após meia hora de gritos.
Enquanto isso, no lobby do San Marco, entre os "subversivos" que chegavam para o encontro, hóspedes faziam o check-in para desfrutar dos quartos oferecidos a R$ 462 a diária. "Ainda temos muitos disponíveis. O movimento está tranquilo", informou o recepcionista Marcelo, enquanto checava a disponibilidade dos cômodos na tela do computador.
Durante todo o dia, o evento não lotou, tendo se limitado a ocupar cerca de metade do espaço previsto. O clima de celebração, porém, era presente. "Estamos felizes por ter o direito de estar no Brasil, quando o povo brasileiro conseguiu reconquistar a sua democracia a partir de suas lutas e de toda a esquerda", exaltou ao TAB o membro da comissão de assuntos internacionais do Partido Socialista Unido de Venezuela, Roy Alberto Daza. "É um evento importante, porque as relações entre Brasil e Venezuela se reativaram nas áreas econômica, política e cultural."
Abraçado aos membros de sua delegação, Daza abriu a bandeira da Venezuela e posou para fotos. "Nosso maior inimigo segue sendo o imperialismo norte-americano e, mais concretamente, o departamento do Tesouro americano, que aplica 730 medidas coercitivas contra meu país", afirmou. "Isso vai provocar um colapso, como já declarou o próprio ex-presidente americano Donald Trump", protestou.
'Alguns equívocos'
À noite, em sua fala, Lula chamou a atenção para a necessidade de realinhar o discurso dos partidos de esquerda para enfrentar o crescimento da "direita fascista". O presidente argumentou que era preferível ter companheiros de esquerda cometendo "alguns erros" em seus governos, do que países controlados pela extrema direita.
"É muito melhor ter um companheiro fazendo alguns equívocos para a gente criticar, do que alguém de direita governando, que não permita sequer que a gente tenha espaço para fazer críticas, contando mentiras e usando fake news", afirmou.
Do lado de fora do Salão Botticelli, participantes do encontro procuravam arrecadar algum dinheiro com a venda de camisetas, livros, jornais, botons, bonecos, copos e tudo o mais que pudesse fazer referência aos nomes históricos do comunismo mundial. O negócio, sem grandes novidades para os iniciados, parecia não atrair muitos interessados.
Sobre um dos móveis encostados a uma parede, uma camiseta dobrada estampava o rosto de Che Guevara. Na foto, o revolucionário olhava para cima, como se buscasse o parapeito da janela do hotel para ver o que ocorria lá fora. Da vidraça, lia-se do outro lado da rua a placa do "Prime Lava Jato" — uma fachada nova do "posto da torre". Nove anos atrás, o lugar ficou famoso, depois que a Polícia Federal descobriu as peripécias bilionárias que doleiros faziam ali com políticos, num escritório inóspito instalado bem ao lado das bombas de combustível — berço da controversa Operação Lava-Jato.
Do mezanino do San Marco, convidados saiam da sala de palestras de tempos em tempos para espairecer as ideias e olhar a paisagem sem graça lá de fora, onde carros paravam a todo instante para abastecer seus tanques.
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