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'Não sou a Disney': como a pirataria de pornô afeta trabalhadoras sexuais

Grupos de Telegram de fotos vazados do Onlyfans são divulgados todos os dias nas redes sociais - Reprodução/UOL
Grupos de Telegram de fotos vazados do Onlyfans são divulgados todos os dias nas redes sociais Imagem: Reprodução/UOL

Do TAB, em São Paulo

30/07/2023 04h01

"Você está cansado de ter que ficar fuçando na internet conteúdos exclusivos das famosas e caiu na chatice de ter que ficar pagando por cada conteúdo?". Esse é um dos vários anúncios para entrar em canais no Telegram que cobram assinaturas piratas que vão de R$ 10 a R$ 129 para ter acesso a milhares de fotos e vídeos de criadoras de conteúdo adulto feito para plataformas como OnlyFans, onde as assinaturas oficiais ficam entre US$ 4,99 e US$ 50. Os grupos usam termos como "vazadas" e "hackeadas".

Piratear pornografia é uma cultura tão disseminada a ponto de que quem vende conteúdo adulto já entender que é apenas uma questão de tempo para ver os próprios materiais sendo compartilhados de graça em outros grupos ou revendidas por terceiros. Os mesmos criadores também estão na ponta mais fraca da relação com a pirataria. São centenas de mulheres e homens que encontram dificuldades para denunciar o compartilhamento sem autorização para as autoridades.

"A maior parte das pessoas que vazam nosso conteúdo têm um discurso de que o nosso trabalho não é digno", conta Svetlana, uma trabalhadora sexual de 25 anos. "A gente paga imposto, a gente vive em um sistema de uberização. E temos que ouvir esse discurso de não ser um trabalho digno por ser o meu corpo. Mas as pessoas não percebem que também vendem o corpo quando vão trabalhar, que um motorista de Uber também tá usando o corpo dele todos os dias."

Para Hilu Hilu, criadora de conteúdo de São Paulo, denunciar a prática pouco ajuda a situação. "As pessoas costumam me falar que 'sempre foi assim', como se ninguém pudesse mudar o pensamento. A gente tem que aceitar isso e achar que isso é culpa nossa", desabafa ela, que não quis revelar a idade.

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Mensagem automática de um canal do Telegram de conteúdos vazados
Imagem: Reprodução/UOL

Uma mistura perigosa

"Flagras, vazados. Raros e exclusivos. 10 reais semanais", convida uma mensagem automática no Telegram, anunciando pacotes com valores diferentes para acesso a conteúdos que, em tese, seriam exclusivos para quem paga assinatura em plataformas como OnlyFans e Privacy.

Os canais no Telegram e ICQ também oferecem "prévias" gratuitas, que normalmente são fotos e vídeos antigos de celebridades e criadoras de conteúdo. Há usuários que se contentam em consumir as "prévias", mas não faltam interessados em pagar pela assinatura "vazada", mostrando que nem sempre a pirataria de conteúdo adulto decorre de falta de dinheiro.

Muitas vezes, especialmente no ICQ, esse conteúdo adulto não ilícito se mistura com outros visivelmente ilegais, como vídeos de exploração sexual de crianças e adolescentes, e vídeos "vazados", normalmente decorrentes da prática de pornô de vingança.

A pornografia infantil no ICQ e Telegram já foi denunciada em uma série de reportagens do Núcleo Jornalismo, que identificou o fenômeno em grupos abertos com milhares de membros. No mesmo balaio estão as fotos vazadas das criadoras de conteúdo, grande parte do gênero feminino.

De acordo com Breno Mello, advogado da APROS-PB (Associação das Prostitutas da Paraíba), vazar pornografia que deveria estar confinada em um espaço pago faz com que ela seja vista mais fácil por pessoas que não são o público-alvo.

"O conteúdo é pago, não é de acesso amplo e quando é vazado afeta pessoas que não eram o foco inicial. Um adolescente nem sempre vai ter um cartão de crédito na mão e não conseguiria ver esse tipo de coisa, mas quando compartilham sem autorização em outros lugares, garante que eles acessem esse conteúdo", afirma.

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Svetlanna, 25, trabalhadora sexual
Imagem: Arquivo Pessoal

É bom para o ego

A partir da pandemia, criou-se uma ilusão de que vender conteúdo é uma forma mais "fácil" de ganhar dinheiro, especialmente para mulheres. Houve um aumento visível de pessoas nessas plataformas, a concorrência ficou mais frenética e não faltam histórias de produtoras de conteúdo que anunciam ter comprado carros ou mansões por causa das plataformas digitais.

"Esse pessoal que foi entrando na pandemia foi dando outro tom pra conversa e foram surgindo essas notícias sensacionalistas. Imagino que isso começou a dar um nó da garganta de quem vê esse tipo de notícia", diz Hilu. "Essa coisa da raiva sempre existiu porque homem não gosta de mulher ganhando dinheiro, homem dodói da cabeça."

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Hilu Hilu, criadora de conteúdo adulto de São Paulo
Imagem: Arquivo Pessoal

Todavia, Hilu também acredita que muitos vazamentos de conteúdo são feitos mais para conquistar a aprovação de outros homens do que conscientemente afetar as trabalhadoras.

Uma das principais regras para fazer parte de alguns grupos de compartilhamento de conteúdo adulto é trazer imagens inéditas vazadas do OnlyFans. Isso ajuda a aumentar o catálogo de forma orgânica e dá uma boa reputação ao membro que quer compartilhar com os outros, de graça.

"Vários fóruns [de conteúdo pirateado] são assim", explica Hilu. "É uma forma de conquistarem uma moral e fazer bem para o ego. Não acho que é tanto para prejudicar, mas sim pra aumentar o ego deles entre os brothers."

'Não sou a Disney'

Cansadas de verem tudo que disponibilizam para assinantes sendo vazados o tempo inteiro, Svetlanna e Hilu pagam por um serviço que mapeia, diária e automaticamente, todas as páginas que estão hospedando os conteúdos pirateados. O serviço também faz uma estimativa de quanto dinheiro elas já deixaram de faturar devido à pirataria. "Perdi milhares de dólares", diz Hilu.

Alguns serviços de monitoramento podem chegar a mais de US$ 100 por mês, mas ajudam. "Antes pesquisava por conta própria, fazia todo o processo de remoção no Google e nos maiores sites de busca, só que isso tava me destruindo mentalmente", conta Svetlanna. "Quando um site é derrubado, é replicado logo em seguida com outra URL. Isso estava me desgastando muito. Não é porque eu ganho dinheiro com isso que eu tô pedindo para ser exposta."

A pirataria de conteúdo adulto não traz só problemas financeiros para quem depende da venda de assinaturas, mas dificulta outros setores da vida pessoal das trabalhadoras. Criadora de conteúdo desde 2015, Hilu teme que as fotos vazadas sem sua autorização possam dificultar a transição de carreira por causa do estigma do trabalho sexual.

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Post de um perfil conhecido por vender fotos vazadas de celebridades e criadoras de conteúdo adulto
Imagem: Reprodução/UOL

"Já encontrei fóruns do pessoal me chamando de mercenária só porque cobro pelo meus nudes. Na cabeça deles, a gente deveria estar dando de graça e não cobrando. É de uma falta de respeito e hipocrisia desses homens. Parece que são pessoas que acham que a gente não é real. Uma coisa é você piratear um filme da Marvel, outra coisa é piratear fotos de uma garota que vive na sua cidade, que você sabe que ela estuda em tal faculdade. Eu não sou uma Disney da vida", desabafa.

Produtos culturais com direitos reservados são retirados do ar por causa do DMCA (Digital Millennium Copyright Act), um conjunto de regras e leis sancionado em 1998 nos Estados Unidos, criado para ampliar a proteção de direitos autorais na internet. Em tese, todos os sites precisam disponibilizar um formulário para denunciar e os conteúdos tendem a cair cerca de 24 horas depois da notificação. É quase automático.

Mesmo com o serviço pago para derrubar a pirataria, muitas coisas ficam de fora dessa varredura como grupos e fóruns fechados que não aparecem no diretório de busca do Google. O jeito é trocar informações com outras trabalhadoras para fazer uma contenção de danos. Nem sempre funciona.

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Grupos de Telegram de fotos vazados do Onlyfans são divulgados todos os dias nas redes sociais
Imagem: Reprodução/UOL

Difícil de denunciar

Para Mello, o advogado que atua na associação de prostitutas da Paraíba, o vazamento de conteúdo das trabalhadoras sexuais dificilmente é levado a sério na seara judicial. Apesar de ser uma prática prevista como crime de pirataria no artigo 184 do Código Penal, são poucos os trabalhadores que conseguem denunciar.

"A grande questão é que esse vazamentos não são lidos atualmente como crime porque de fato o Judiciário tem um caráter conservador com o trabalho sexual. Então, se vaza conteúdo do trabalho há uma culpabilização do próprio exercício da sexualidade. Nesse caso, a maioria das mulheres não ajuízam o estigma é tão grande que é difícil elas pleitearem ações porque terão suas trajetórias profissionais questionadas", explica.

A própria Svetlanna tenta mudar a cultura de impunidade em torno do vazamento de seu conteúdo, mas diz que encontrou resistência e preconceito quando foi fazer um boletim de ocorrência.

Tentando denunciar um homem que sistematicamente seguia vazando e revendo o conteúdo dela e de outras garotas, a trabalhadora sexual procurou uma delegacia especializada em crimes cibernéticos. Ela lembra que passou horas conversando com o delegado, que se mostrou interessado em investigar o caso. Duas semanas depois, ele assinou seu Onlyfans.

"Eu queria que minha denúncia fosse pra frente, mas isso me desmotivou totalmente pra procurar ajuda. O delegado entrou em contato comigo pedindo conteúdo exclusivo, foi bizarro."

Mesmo com a dificuldade de judicializar os casos, Mello defende que a denúncia das trabalhadoras siga acontecendo para dar luz aos problemas da categoria e criminalizar quem tira proveito da prática.

"A pessoa sabe que tem uma série de sujeitos desprotegidos e que é lucrativo se inserir nesse espaço para explorá-las. É preciso colocar um holofote nessas zonas cinzentas, dizendo que é arte e entretenimento e essas pessoas precisam ser respeitadas pelo que elas produzem, até porque elas também pagam impostos", afirma.