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Brasileiros pagam 350 milhões de euros ao ano à segurança social portuguesa

Nas redes sociais, o ódio contra brasileiros é perceptível na quase totalidade dos comentários aos posts de portais de notícias portugueses em que, de alguma maneira, o assunto esteja relacionado ao Brasil.

Dia 27 de setembro, o perfil da SIC Notícias informou que o mosquito que pode transmitir dengue e zika foi identificado em Lisboa.

"Haverá alguma coisa boa que os brasileiros trazem para Portugal?", reagiu o perfil "A cartilha portugueza", com 1.194 seguidores.

Vinte dias antes, quando o jornal Expresso publicou a foto da cantora brasileira Bia Ferreira, um total de 23 usuários da rede recomendou à artista que fosse embora de Portugal.

"Mas pq é q esta preta zuca ainda cá está afinal?", escreveu Ruca, com 66 seguidores. "VOLTA PARA O TEU PAÍS", publicou assim, em letras maiúsculas, o perfil Europa aos Europeus (3.432 seguidores).

"Quando um português nos diz para 'voltar para a nossa terra', esquece que, se abandonarmos este barco, ele afunda", escreveu a psicóloga brasileira Mariana Braz, 30, em artigo no jornal Público, de Portugal.

Em 2020, os brasileiros contribuíram com 350 milhões de euros para a Segurança Social de Portugal — mais do que todos os residentes estrangeiros da União Europeia reunidos (313 mil euros).

Em contrapartida, foram beneficiados com 104 milhões de euros em prestações de desemprego e parentalidade, subsídio por doença, abono de família e rendimento social de inserção. Os dados são do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social do país.

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Imagem: Arte/UOL
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'Favoráveis às contas públicas'

A impressão geral na sociedade portuguesa, no entanto, é de que brasileiros sugam o Estado.

Numa escala de 1 a 10, os portugueses situam em 5,6 a opinião de que "os imigrantes são uma sobrecarga para a segurança social" — o terceiro maior índice da União Europeia, perdendo apenas para Islândia (6,6) e Espanha (6,1).

O menor índice é da Bulgária: 2,7, conforme o relatório "Indicadores de Integração de Imigrantes 2021", publicado pelo Alto Comissariado para as Migrações, pelo Observatório das Migrações e pela República de Portugal.

Em Portugal, a relação entre as contribuições dos estrangeiros e as suas contrapartidas do sistema de Segurança Social português — as prestações sociais de que beneficiam — são bastante favoráveis para contrabalançar as contas públicas nacionais, constituindo-se como uma dimensão importante do reforço e sustentabilidade do Estado social do país Relatório "Indicadores de Integração de Imigrantes 2021"

Preço do 'programa'

Mariana Braz é dona de um perfil no Instagram — "Brasileiras não se calam" — com relatos de quem enfrenta situações de preconceito no exterior. Quase todas as histórias são de residentes em Portugal — Mariana está em Lisboa há seis anos.

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Entre os casos postados no perfil, há o de uma mulher cujo marido, entregador, foi impedido de entrar na casa de uma cliente porque ela temeu que ele tivesse pulgas.

Mariana Braz, dona do perfil 'Brasileiras não se calam': 'Vivi situações de discriminação por parte de proprietários de casas que aluguei, em relacionamentos amorosos, com colegas de trabalho'
Mariana Braz, dona do perfil 'Brasileiras não se calam': 'Vivi situações de discriminação por parte de proprietários de casas que aluguei, em relacionamentos amorosos, com colegas de trabalho' Imagem: Lucas Lima/UOL

Também de uma enfermeira que, no hospital onde trabalha, precisa responder com frequência aos colegas se já arrumou marido e quanto custa o "programa".

Mariana Braz tem sua própria coleção de situações de xenofobia — "por parte de proprietários de casas que aluguei, em relacionamentos amorosos, com colegas de trabalho, na universidade, na via pública, na academia, em boates".

A situação mais recente ocorreu no trabalho, uma instituição de apoio a mulheres sobreviventes de violência doméstica. Uma delas se recusou a ser atendida por Mariana, "uma brasileira". Exigiu a presença de uma profissional portuguesa.

Ela diz sentir que a experiência de viver em Portugal pode enfraquecer a autoestima de brasileiros.

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Ser constantemente apontado como estrangeira e inferior não é fácil. Cada discriminação vai diminuindo nossa autoconfiança Mariana Braz

"Parece haver uma frustração, por uma parte da população, em relação ao Brasil e aos brasileiros. Apesar de todos os problemas, a antiga colônia tem um destaque mundial maior do que Portugal — por isso, a necessidade de inferiorizar tudo o que vem do nosso país", diz.

Sem colaboração nos anos Bolsonaro

Os quatro anos de governo Jair Bolsonaro representaram um "lapso de tempo" em que a colaboração entre Portugal e Brasil no combate à xenofobia "não existiu", afirma ao TAB Isabel Almeida Rodrigues, secretária de Estado e da Igualdade e Migrações de Portugal.

Secretária das Migrações de Portugal, Isabel Rodrigues diz ter havido um 'lapso de tempo' no combate à xenofobia nos anos Bolsonaro
Secretária das Migrações de Portugal, Isabel Rodrigues diz ter havido um 'lapso de tempo' no combate à xenofobia nos anos Bolsonaro Imagem: Divulgação

A cobrança de ações por parte de Portugal feita pelo governo Lula, assim, sinaliza uma "mudança notória" no diálogo entre os países, avalia a secretária.

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Antes, era um governo com intervenções de caráter racista e xenófobo. A mudança política no Brasil é perceptível, há um foco na dignidade das pessoas e no combate a todos os comportamentos que possam pôr em crise essa dignidade Isabel Rodrigues, secretária das Migrações de Portugal

A secretária relaciona o aumento da xenofobia ao avanço dos movimentos de extrema direita na Europa — o Chega, partido conservador português que adota discurso anti-imigração, foi fundado em 2019 e já é a terceira maior força política do país, com 12 deputados na Assembleia da República.

Crises econômicas provocadas pela pandemia de covid-19 e, agora, pela guerra na Ucrânia —com alta no preço dos serviços e alimentos— podem contribuir para a percepção de que estrangeiros pioram a vida dos locais, avalia a secretária Isabel Almeida Rodrigues.

Ela reconhece que há muito a ser feito para que a sociedade portuguesa acolha melhor os imigrantes. Considera o trabalho de "desconstrução de estereótipos e preconceitos" tão importante quanto a "censura penal".

Condenação por racismo

Em Portugal, os crimes de racismo e xenofobia não são previstos em lei — o artigo 240 do Código Penal, que trata do crime de incitamento ao ódio e à violência, é utilizado para julgar esses casos.

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Ainda assim, Teresa Pizarro Beleza, coordenadora do Observatório do Racismo e Xenofobia, recorda-se de apenas uma condenação por racismo, que "terá sido nos anos 1980/1990", como explicou ao TAB. Proceder ao levantamento preciso dessas condenações é uma das tarefas urgentes previstas para o Observatório.

Ela explica que "ódio racial" também pode ser considerado agravante para outros crimes, como o homicídio. E não descarta a possibilidade de que o Observatório recomende ao governo alteração na lei, para que seja mais dura contra racismo e xenofobia — punindo, inclusive uma situação comum em Portugal, a de proprietários que se recusam a alugar imóveis para brasileiros.

"Tenho defendido que, embora a existência do artigo 240 do Código Penal seja positiva, porventura será insuficiente", afirma Teresa Pizarro Beleza.

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