Brasil quer mais câmeras corporais em PMs; São Paulo nada contra maré
O governo federal, por meio do Ministério da Justiça, quer entregar até o fim deste ano duas normas para expandir o uso de câmeras corporais pelo país.
Atualmente, sete estados contam com a tecnologia, outros dez estão em fases de teste ou licitação e nove estudam implementá-la — apenas um, o Maranhão, não prevê política pública de inclusão das "bodycams".
A primeira medida prevista pelo governo federal é uma norma técnica sobre o equipamento, já que alguns aparelhos são vendidos sem hardware e software adequados, o que pode comprometer a confiabilidade das gravações — a chamada quebra de cadeia de custódia.
A segunda norma tratará das diretrizes gerais do uso desses equipamentos, como funcionamento, acesso ao sistema e as circunstâncias de utilização.
Na avaliação do governo, essa norma será fundamental, pois muitos estados, com pressa para ter os equipamentos, iniciaram licitações sem protocolos básicos definidos.
"A gente devia começar criando esse arcabouço jurídico básico para que esse equipamento possa ser de fato produzido nas forças de segurança do país como um todo. Então, essas são duas entregas previstas até o final deste ano. Mas acho que há mais entregas que são importantes para além delas", afirma ao UOL Isabel Figueiredo, diretora do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), vinculado ao Ministério da Justiça.
O advogado Gabriel Sampaio, diretor da ONG Conectas Direitos Humanos, defende que o uso das câmeras deve ser generalizado em todas as forças de segurança pública do país.
"Enquanto instrumento de controle, instrumento de preservação do trabalho policial e até de produção de provas, cabe para todos os agentes públicos que tenham monopólio do uso da força."
Das ruas para as grades
Pesquisadores apontam que os presídios brasileiros costumam ser um termômetro para se medir a tensão da segurança pública fora deles.
No caso das câmeras corporais, existe hoje um processo inverso. O sistema penitenciário começou a introduzir a tecnologia para dentro das grades a partir da experiência nas ruas com as polícias.
O estado do Amazonas adquiriu este ano o Sistema de Monitoramento e Câmeras para uniformes de agentes e policiais penais com recursos do repasse Fundo a Fundo.
Entre as unidades prisionais contempladas está o Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), que em 2017 foi cenário de um conflito entre faccionados que terminou com 56 detentos mortos.
O Ceará, que tem 30 unidades prisionais, foi o primeiro estado a adotar câmeras corporais em uniformes e fardas de todos os agentes e policiais penais em suas unidades. Os testes iniciaram em 2022 e foram firmados em 2023.
O governo estadual apresentou em Brasília em agosto deste ano os primeiros resultados sobre as "bodycams" no sistema prisional: redução de 50% de casos de denúncias sobre violência nas unidades.
O Ministério da Justiça quer que o modelo cearense seja adotado em todas as demais unidades federativas a partir de 2024.
"A gente não está pensando a câmera como algo exclusivo para uma força: 'essa força que viola, vamos colocar lá'. Não. Ele é um projeto compreensivo, que pega todas as forças de segurança pública, inclusive, como não poderia deixar de ser, as nossas [sob responsabilidade do governo federal]", afirma Isabel Figueiredo.
Quem é contra nada contra a maré
A interlocução entre os governos estaduais e federal tem sido a de integrar o sistema de câmeras na maior parte dos casos. Há, no entanto, obstáculos políticos.
No Amazonas, por exemplo, o comando da PM afirma que a adoção das câmeras corporais pode constranger a atividade policial. Em Alagoas também há resistência entre o oficialato.
Em São Paulo, tido por outros estados como exemplo, as ações do atual governo estadual são de desestímulo à tecnologia.
O governo paulista cortou em 35% o orçamento destinado às câmeras corporais em 2023 — caiu de R$ 152 milhões para R$ 97,6 milhões.
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que não ampliará o número de "bodycams", sob o argumento de que pretende priorizar a presença de policiais nas ruas e o policiamento ostensivo.
Na semana passada, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que o uso de câmeras pela Polícia Militar não é obrigatório em operações que tenham como finalidade responder a ataques contra agentes.
Qualquer novidade gera resistência, ainda mais nas forças de segurança que são tradicionais e têm culturas muito fechadas. Essas resistências vêm, também, de uma infelicidade que foi transformar as câmeras corporais numa pauta política, quando ela é uma pauta técnica. Isabel Figueiredo, diretora do Susp (Sistema Único de Segurança Pública)
Isabel lembra que as câmeras corporais não são novidade no exterior. "Há países que usam há 20 anos. E a gente aqui está começando a dizer se isso é de direita ou de esquerda, como se o equipamento tivesse viés ideológico. Não tem cabimento."
A implementação das câmeras é uma conquista do Estado de Direito, que remonta há três, quatro séculos. Foi com base nela que todo um rol de direitos e garantias fundamentais foi estabelecido para beneficiar toda a sociedade, incluindo os agentes públicos. Gabriel Sampaio, advogado diretor da ONG Conectas Direitos Humanos
Pesquisadores e especialistas em segurança pública afirmam que as câmeras corporais trouxeram mais transparência às ações dos servidores públicos armados dos estados que aderiram à tecnologia, mesmo havendo brechas para manipulação.
Segundo eles, o sistema ainda precisa ser aprimorado. Duas formas urgentes são diminuir ao máximo a intervenção humana e exigir que órgãos independentes, como secretaria de Justiça e/ou Ministério Público, tenham poder total sobre as gravações.
Esta reportagem é uma parceria do UOL com a Conectas Direitos Humanos, com apoio do Consulado Geral da Alemanha em São Paulo
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