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UOL analisou 319 mil pagamentos de farmacêuticas a profissionais de saúde

O UOL montou uma base de dados com 319 mil registros para investigar a relação econômica entre médicos brasileiros e fabricantes de remédios e próteses. As empresas contratam palestras, pagam viagens, convidam para jantares e dão presentes para os profissionais, o que abre portas para conflitos de interesse.

Os dados analisados são de Minas Gerais, o único estado do país que exige, por lei, que todos os pagamentos e benefícios concedidos para quem atua na área da saúde sejam declarados.

A lei mineira foi proposta pelo deputado estadual Antônio Jorge (PPS), que é médico e foi secretário de Saúde no governo de Antonio Anastasia (PSDB). Aprovada nas vésperas do Natal de 2016, sofreu oposição do setor — tanto dos médicos quanto da indústria.

Em 2017, ano em que a declaração se tornou obrigatória, advogados de farmacêuticas disseram para funcionários da Secretaria que não seria preciso declarar porque ninguém iria fiscalizar. A história foi narrada ao UOL por duas pessoas que lideraram a implementação da lei.

De fato, as informações nunca foram fiscalizadas. Além disso, as empresas enviam os dados de uma forma que dificulta as análises e até mesmo impede o paciente de saber o valor total destinado a cada médico.

Ao longo de cinco meses, o UOL reuniu os dados declarados desde 2017, padronizou os registros, corrigiu falhas, identificou tentativas de ocultar os pagamentos e cruzou as informações com o cadastro médico do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais.

A análise mostra que a indústria da saúde concedeu R$ 198 milhões para médicos de Minas Gerais, entre 2017 e 2022 — excluindo-se os gastos declarados como financiamento de pesquisas. Desse valor, 70% foi destinado a apenas 3% dos médicos do estado.

Como o UOL analisou os dados

Os fabricantes de remédios, próteses e equipamentos médicos têm até 31 de janeiro para enviar para a Secretaria de Saúde de Minas Gerais todos os pagamentos que fizeram para profissionais de saúde no ano anterior.

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Os dados são enviados por meio de um sistema informatizado da pasta. Em seguida, são disponibilizados para consulta pública em um site chamado DeclaraSUS. Ao contrário do que o nome indica, as informações não estão relacionadas ao Sistema Único de Saúde.

Mas esse sistema tem muitas falhas. A principal delas é que as empresas podem declarar as informações do médico no formato que quiserem.

Na prática, um mesmo profissional aparece como se fosse diversas pessoas diferentes. Se um paciente pesquisar o nome do seu médico, pode encontrar apenas uma parte das informações.

Veja o exemplo das grafias usadas no nome do dermatologista Luiz Mauricio Costa Almeida:

- LUIZ MAURICIO DA COSTA;
- LUIZ MAURICIO COSTA ALMEIDA;
- LUIZ MAURICIO ALMEIDA;
- LUIZ ALMEIDA;
- DR LUIZ MAURICIO COSTA ALMEIDA;
- LUIS MAURICIO;
- LUIZ MAURICIO;
- LUIZMAURICIOCOSTAALMEIDA;

E as grafias do seu registro profissional:

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- 28153
- 28153MG
- MG 28153
- MG0028153
- MG28153
- 28143
- INDISPONIVEL

O UOL usou técnicas de gestão de dados para padronizar os registros.

Além disso, solicitou pela Lei de Acesso à Informação a base de dados do DeclaraSUS com a adição do campo do CPF dos beneficiários. Para não violar a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), a reportagem pediu os CPFs mascarados — com apenas a parte central dos números visíveis.

Na maior parte dos casos, as indústrias omitem o CPF. Mas as informações disponíveis auxiliaram no processo de padronização.

Usando o exemplo acima, em todos os registros atrelados ao dermatologista foi incluída uma coluna padronizada com a informação "28153 - LUIZ MAURICIO COSTA ALMEIDA".

Assim, foi possível calcular que o médico foi beneficiário, no total, de R$ 1,2 milhão. Ao UOL, Almeida disse que suas prescrições médicas não estão atreladas ao patrocínio. "Não deixo de passar o que é melhor para o paciente".

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Os dados originais de Minas Gerais tinham mais de 80 mil combinações diferentes de nomes e registros profissionais médicos. Após a padronização feita pelo UOL, o número caiu para 37 mil.

Ainda há casos de médicos que aparecem como mais de uma pessoa na base de dados, mas são profissionais que receberam quantias menores, não interferindo nos cálculos apresentados na reportagem.

O UOL também usou dados da Receita Federal e descobriu que diversos pagamentos foram registrados em nome de empresas ligadas aos médicos, como consultórios e firmas de consultoria. Quando foi possível comprovar que o médico era o real beneficiário, os dados foram incluídos nos cálculos.

A reportagem identificou ainda que centenas de registros foram omitidos. Em vez de serem declarados como pagamentos e benefícios a médicos, foram inseridos em outro conjunto de dados, referente a patrocínios de eventos de saúde — que deveria incluir somente organizadores, como sociedades e associações médicas.

Especialidades mais patrocinadas

Os dados mineiros não contemplam a especialidade dos médicos patrocinados. Nos Estados Unidos, por exemplo, que foi o primeiro país a criar uma legislação do tipo, em 2010, os registros trazem essa informação.

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Depois de padronizar os registros mineiros, o UOL fez um controle de qualidade nos dados dos médicos que respondiam por 70% dos pagamentos. São 1.716 profissionais, que representam apenas 3% da força médica de Minas.

Em seguida, a reportagem cruzou os dados desse conjunto de profissionais com a base de dados do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG), em que consta a especialidade. No caso de médicos que são clínicos gerais e têm uma segunda especialidade, foi considerada a última.

O cruzamento revelou que os cardiologistas representam 12% desse grupo. Dermatologistas e endocrinologistas, 10% cada. Reumatologistas, 7%. Psiquiatras, 6%. Oncologistas e ortopedistas, 5% cada.

Além de médicos, os dados mineiros informam que R$ 10 milhões foram destinados a outras profissões da saúde, desde 2017. São dentistas, farmacêuticos, enfermeiros, veterinários, nutricionistas e fisioterapeutas.

Hospitais, clínicas, farmácias, sociedades e associações médicas ficaram com mais R$ 17 milhões da indústria da saúde. Eventos médicos ganharam R$ 34 milhões em patrocínios.

A soma total — excluindo o financiamento de pesquisas — chega a R$ 259 milhões nesses seis anos.

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Dados de 2023 com problemas

A declaração de 2023 já está disponível. O UOL recebeu os registros pela Lei de Acesso à Informação, mas constatou uma mudança radical em comparação aos anos anteriores.

Os dados de muitas indústrias estão duplicados. De algumas delas, quintuplicados. Há um caso até em que os registros de uma empresa se repetem vinte vezes.

A reportagem procurou a área técnica da Secretaria de Saúde de Minas para informar os erros identificados. A pasta explicou que mudou a forma de declaração dos dados ao longo de 2023, o que pode ter gerado o problema.

"Como foram identificados alguns dados em duplicidade, gerados no momento da carga realizada pelos usuários da aplicação, estamos em fase de estudos para implementação de melhorias no processo de carga de dados e de saneamento da base de dados existente, que deverão ser implementados oportunamente", disse a Secretaria de Saúde de Minas.

Devido aos problemas identificados nos dados de 2023, o UOL não incluiu as informações do ano passado na análise.

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