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Fiscalização falha, e objetos indígenas são vendidos livremente nas redes

Cocar com pena de garça feito pela etnia fulniô, R$ 5.300. Quadro com cocar indígena, R$ 7.200. Cocar com pena de arara azul, R$ 7.800.

Objetos indígenas, produzidos com penas de animais silvestres, cuja compra, venda e até guarda são proibidas no Brasil, são vendidos livremente na internet.

Encontrar estes anúncios não é um desafio: basta buscar "cocar indígena" e "pena de arara" para chegar a redes sociais como Facebook e Instagram e sites de e-commerce como Mercado Livre e Enjoei.

Os produtos proibidos também estão em sites de leilão.

Cocar raro de arara azul à venda no Mercado Livre
Cocar raro de arara azul à venda no Mercado Livre Imagem: Reprodução

O UOL identificou que pelo menos 21 deles vendem ou já venderam cocares indígenas com penas naturais.

No Litoral Paulista Leilões, mais de cem cocares foram leiloados com valores entre R$ 850 e R$ 7.800 cada um.

Pelo WhatsApp, um atendente da empresa afirmou à reportagem que as peças são feitas com penas tingidas e não de animais silvestres, mas se recusou a fornecer documento de origem do material leiloado.

"São informações particulares da empresa e não pode sair assim dessa forma para qualquer pessoa que solicitar", disse.

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A lei brasileira prevê pena de até um ano e multa a quem comercializa produtos indígenas produzidos com penas de animais silvestres.

O UOL mostrou as imagens das peças ao professor e biólogo Luís Fábio Silveira, curador da seção de aves e vice-diretor do Museu de Zoologia da USP (Universidade de São Paulo).

Em um cocar ele identificou ao menos três espécies de araras. "Não há qualquer evidência de alteração da cor ou do formato das penas."

A Litoral Paulista rebateu a afirmação do professor da USP dizendo que "dificilmente alguém consegue constatar algo por apenas uma foto" e que está há mais de 10 anos no mercado.

Cocar arara azul no Litoral Paulista Leilões
Cocar arara azul no Litoral Paulista Leilões Imagem: Reprodução

Denúncia ao Ibama não deu em nada

Um dossiê produzido pela Renctas (Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres), denunciando mais de cem casos do tipo, com nomes de vendedores e links de anúncios, foi entregue ao Ibama em junho de 2023.

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"Até hoje não recebemos nenhum retorno", disse o coordenador-geral da Renctas Dener Giovanini.

O Ibama negou acesso ao processo à reportagem em pedido feito por meio da Lei de Acesso à Informação, mas admitiu que nenhuma fiscalização foi feita.

O que dizem as plataformas de vendas

O Mercado Livre informou que removeu anúncios citados pela reportagem após uma notificação feita pelo Ibama.

"Trabalhamos de forma incansável para combater o mau uso da sua plataforma, a partir da adoção de tecnologia e de equipes que também realizam buscas manuais", disse a empresa em nota.

A Enjoei disse que não foi procurada pelo Ibama, mas que proíbe anúncios que envolvam contrabando de produtos com parte de animais.

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A Meta, dona do Facebook e Instagram, afirmou em nota que proíbe conteúdo que promova a compra ou venda de animais em risco de extinção e produtos derivados.

Nenhum dos links da denúncia da Renctas, no entanto, foi removido, nem o de uma página de Instagram que diz que os cocares ali vendidos são feitos com penas de animais silvestres, incluindo araras, gaviões e papagaios.

Imagem: Reprodução

Venda proibida

A Constituição brasileira e o Estatuto do Índio permitem que indígenas usem partes de animais silvestres em objetos para fins culturais, mas a legislação diz que ninguém, nem os próprios indígenas, pode comercializá-los.

Mesmo quando os indígenas praticam o comércio, não são eles a receber a maior fatia do lucro, que na maioria das vezes fica na mão de contrabandistas.

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"Você tem cocares de etnias brasileiras comercializados por 80 mil euros, comprados aqui no Brasil por R$ 200, R$ 300", diz Giovanini, da Renctas.

Duas leis tratam do tema: a de Proteção à Fauna, de 1967, que proíbe o comércio de espécimes da fauna silvestre e de produtos que impliquem na sua caça, e a de Crimes Ambientais, de 1998.

A fiscalização dessas redes, no entanto, ainda engatinha.

Um levantamento enviado à reportagem pelo próprio Ibama mostra que, até junho, seis autos de infração foram registrados em 2024; no ano passado houve 20.

Quase todos são contra pessoas físicas, contra os próprios indígenas ou pequenos artesãos. Só uma multa foi contra uma empresa — um hotel do Espírito Santo. Os valores das multas variam de R$ 500 a R$ 85 mil.

Crime aumentou com as redes sociais

A denúncia da Renctas enviada ao Ibama continha mais de cem links. Nenhum coincide com os autuados a partir de 2023.

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Sites e redes sociais em que os anúncios foram veiculados, encontrados pela reportagem, também não aparecem nas autuações.

A percepção de que o crime se intensificou com as redes sociais é partilhada pelo coordenador de fiscalização da biodiversidade do Ibama, Isaque Medeiros, e por agentes da Polícia Federal.

"A atividade continua a existir, de maneira mais tecnológica e com menos intermediários", afirma o delegado de Polícia Federal Cristiano Nascimento dos Santos, que já atuou em casos de contrabando internacional de artefatos no Mato Grosso.

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Imagem: Reprodução

'Cocar de aldeia'

No site da Bastos Leilões, do Rio, há cocares "comprados na própria aldeia".

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O responsável pelo site afirmou à reportagem que se tratava de peças fabricadas "há muito tempo", quando "era permitida a comercialização" (a Lei de Proteção à Fauna é de 1967).

A venda continua sendo proibida nesses casos, segundo o Ibama.

Um anúncio do site de Leilões Leslie Diniz diz que um cocar já leiloado foi confeccionado "com penas naturais de aves em extinção provenientes da região Amazônica".

A proprietária, Leslie Diniz, não respondeu às perguntas enviadas no contato que aparece no site.

As peças são vendidas também no exterior. A reportagem encontrou anúncios de "kayapó headdress" (cocar kayapó) feito com penas de animais silvestres nos sites Etsy e 1stDibs.

Uma das peças custava mais de R$ 250 mil.

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A 1stDibs disse, em nota enviada à reportagem, que "não acredita que as peças violem as leis brasileiras devido à documentação providenciada pelo vendedor".

A empresa se recusou a fornecer cópia de tal documentação, alegando privacidade do cliente.

Após o contato, o anúncio foi atualizado e incluiu a informação de que as penas teriam sido obtidas na França, de maneira legal, embora mantenha no título que o cocar é no estilo kayapó, um grupo étnico brasileiro.

A Etsy não respondeu ao e-mail enviado.

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Imagem: Reprodução

Funai ajudou a criar demanda

Fazer a lei "pegar" no Brasil é um desafio, já que o próprio Estado estimulou esse mercado.

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A Funai, criada em 1967, vendeu artefatos indígenas em lojas em várias cidades do país até 2004.

Um estudo feito pela fundação ainda em 2006 admitiu que o órgão pode ter sido parcialmente responsável por fazer a plumaria indígena virar objeto de especulação do mercado internacional.

Parte dos anúncios encontrados nos leilões e sites diz que a origem das peças é a própria Funai.

Outro desafio é o receio de prejudicar populações indígenas, que dependem do comércio de artesanato para o próprio sustento.

A reportagem conversou com três comerciantes indígenas, de comunidades localizadas em Alagoas e na Bahia, que dizem depender das vendas.

"Eles [Ibama] teriam que fiscalizar era os não indígenas", disse um deles, que considera que a proibição do comércio é uma falta de respeito.

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"É mais uma forma de eles [governo] quererem nos descaracterizar. Já não basta o tanto que tiraram de nós."

Outro indígena ouvido afirmou que os clientes mais comuns são arquitetos e pessoas que trabalham com decoração.

A venda de peças com penas de animais silvestres pela Funai só acabou formalmente quando a Polícia Federal deflagrou a Operação Pindorama, em 2021, que apreendeu objetos e prendeu funcionários do órgão em Brasília.

As investigações mostraram que um norte-americano encomendava partes de animais via fax, inclusive de forma avulsa, com apoio de servidores do órgão.

O delegado da Polícia Federal que conduziu o caso, Jorge Pontes, disse que o artesanato era "mera fachada para o tráfico e a matança de animais".

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