Ao vivo, mas nem tanto: os segredos de engenheiros de playback de megashows
O universo dos megashows depende de uma figura escondida. Profissionais com notebooks e dezenas de sons pré-gravados no gatilho fazem cada vez mais diferença no palco.
O posto vem se valorizando e tem nome: engenheiro de playback.
Os mais experientes, que trabalham com os maiores artistas, podem ganhar até US$ 10 mil (R$ 55 mil) por semana, mais que instrumentistas de apoio de turnês.
O engenheiro de playback cuida de trechos musicais prontos, disparados e misturados ao que o cantor e a banda executam ao vivo.
Atualmente é quase impossível uma atração principal de festival ou um astro de estádio não usar ao menos alguns desses sons.
Engenheiros de playback de turnês internacionais contam ao UOL que podem adicionar até 40 faixas extras de sons (vocais e instrumentais) pré-gravados em uma música.
Isso é corriqueiro para artistas pop que fazem sons mais elaborados, cheios de camadas.
Eles também comandam o "timecode", cronômetro que orienta todos os efeitos, luzes, fogos e telões do palco. Se eles errarem, o show dança.
Os fãs podem não saber, mas a magia que eles presenciam está nos dedos dessa figura que mistura DJ, músico e técnico.
No Brasil, há um estigma sobre o termo. "Playback" costuma se referir a situações em que tudo é dublado, quando cantor e banda só fingem tocar.
Mas a dublagem total não é comum em megashows do Brasil ou de fora. O padrão é essa mistura de "ao vivo" com sons prontos.
Brasileiros preferem chamar a prática de "VS" (Virtual Studio), para deixar claro que só uma parte do som é virtual.
Seja qual for o nome, o uso de bases pré-gravadas também cresce por aqui, especialmente no pop, mas também no rock e até no sertanejo.
Essencial e 'invisível'
"Eu sempre digo que um bom engenheiro de playback é invisível. Se você é bom no seu trabalho, ninguém sabe que você está ali", diz o norte-americano Jason Vaughn, que já trabalhou com H.E.R, Charlie Puth, Janelle Monáe e outros.
Ele diz que, até 2023, ganhava até US$ 5.000 (R$ 27 mil) por semana na estrada, muito mais do que já ganhou antes como pianista ("foi a primeira vez que consegui me sustentar com a música").
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Quero receberEm turnês internacionais, um engenheiro de playback iniciante ganha a metade deste valor e um experiente pode ganhar até o dobro do seu pagamento de 2023, diz Jason.
Alta demanda
"Quando comecei, em 2018, nem tinha ideia de que era esse trabalho", conta Jason.
"Agora está começando a virar uma coisa mais conhecida no mercado, há uma demanda por engenheiros de playback bons de verdade."
A procura é tanta que, no Rock in Rio 2019, ele teve que se desdobrar. Fez o playback de Charlie Puth e H.E.R em sequência.
"Eles tiveram que arrumar um carrinho para me levar de um palco para o outro. Foi uma loucura", conta, aos risos.
O engenheiro de playback suíço Fabian Egger começou a fazer o serviço extra sentado no banco da bateria.
Depois, largou as baquetas e ficou só nos computadores. Ele já trabalhou com Zara Larsson, Marina and the Diamonds, Kim Petras e outros.
Quando havia quatro ou cinco instrumentos em uma música dos Beatles ou dos Rolling Stones, era uma coisa. Hoje as músicas pop têm 80, cem sons diferentes. Obviamente ninguém vai colocar cem músicos no palco. Fabian Egger engenheiro de playback
"Todo mundo precisa de faixas de apoio. Às vezes mais, às vezes menos. Mas se você quer que a música siga a gravação original, é como a banda toca", diz Fabian.
"Eu já vi arquivos originais de músicas da [cantora australiana] Sia com mais de 150 faixas de sons. Então, para ser fiel à música, você toca pelo menos 40, 50 faixas no show [misturadas às vozes e instrumentos ao vivo]", ele exemplifica.
Versão brasileira
A sigla VS, usada para descrever a prática no Brasil, vem do equipamento Virtual Studio, popular no final dos anos 1990 e começo dos 2000.
O produto ficou ultrapassado, mas o nome permaneceu e hoje indica o acréscimo das faixas gravadas, fugindo do palavrão "playback".
"O playback é quando ninguém está tocando, muito usado em programa de televisão. É diferente de VS, que é simplesmente incorporar elementos ao show", diz Rico Manzano, diretor do Estúdio Central, em São Paulo.
"O Roger Waters, a Sade, muita gente usa. E, obviamente, todo mundo do trap e do pop. Grandes nomes do rock, como o Paul McCartney e o Iron Maiden também vão ter algumas coisas, desde um grave extra até o som de um helicóptero passando."
"Quem viu o Bruno Mars no The Town percebeu que a banda estava arrebentando. E nem conseguiu distinguir bem o VS, que estava superbem equilibrado. É um recurso profissional. O da Madonna é impecável", elogia.
'Piloto do avião'
A produtora paranaense Vivian Kuczynski prefere usar o termo padrão internacional. "Aqui se diz VS, para evitar a polêmica, mas o termo certo é playback mesmo", afirma.
Ela já trabalhou com Carol Biazin, Jão, Forfun e outros. "Se fosse replicar o disco ao vivo, a gente ia precisar de vinte backing vocals e dez pessoas tocando sintetizador. São coisas impossíveis de recriar, principalmente no mundo pop."
O trabalho começa antes do show, e exige habilidade musical na mesma medida dos instrumentistas no palco. Afinal, alguém precisa pré-gravar as tais bases.
"Eu faço todos os arranjos antes em estúdio. Tudo, tudo", reforça.
"Cuido do 'timecode'. As pessoas da luz, do led, dos fogos, da arte programam tudo em cima disso. É como se eu fosse o piloto do avião."
"Nos EUA, há um tempo existe o engenheiro de playback. No Brasil, ainda é comum o baterista ou o guitarrista soltar. Tenho amigo baterista que já teve problema porque deu uma baquetada no computador", ela ri.
"Estamos ganhando mais atenção, mas acho que pode melhorar. Há turnês que acabam investindo mais em cenografia e negligenciando o áudio", diz Vivian.
The Weeknd e Travis Scott exigentes
É comum que o produtor do álbum também crie as bases dos shows.
"As bandas vão escolhendo gente de confiança. Para quem está no meio da produção musical, é uma profissão que vai crescer", aposta Rico Manzano.
"Isso não tem mais volta. Não vejo um demérito de quem faz. É realmente para ter mais qualidade'", diz Andreas Schmidt, dono da Áudio Biz, que faz eventos como o Lollapalooza Brasil.
"Fizemos agora o The Weeknd. Fiquei impressionado, a banda tocava e o cara cantava valendo. Tinha muita coisa gravada, mas ele faz um trabalho excelente."
Uma habilidade importante dos novos popstars é navegar nessa mistura. "Muitos vão lá na frente da mesa de som e falam o que querem."
Outro trabalho de Andreas foi com Travis Scott em SP. O rapper não falou com brasileiros, mas sua equipe tinha demandas rigorosas.
"Esses caras são todos produtores, sabem o que estão fazendo. Mudou muito, e para melhor."
Dois notebooks e espaço precioso
"Geralmente chego no lugar do show de manhã. Monto meu equipamento de um dos lados do palco e me certifico de que todos os sons pré-gravados estão perfeitos, no volume certo e equilibrados com o que vai ser tocado ao vivo", diz Fabian.
Ele sempre tem o projeto de todos os sons da música, e coloca no "mudo" o que será tocado ao vivo à noite — em geral o vocal principal e alguns instrumentos básicos.
"O difícil de [show de] festival é que eu não posso ter ninguém muito perto de mim. Se alguém esbarra em um cabo, pode parar a música toda. Quando o show é nosso, o espaço é certo. Mas em festival às vezes é um canto improvisado, é o meu maior medo", diz Vivian.
Os engenheiros calejados têm sempre dois notebooks, com todo o sistema funcionando em dobro, para o caso de pane.
O programa padrão é o Ableton Live (basicamente, uma "pista" em que cabem inúmeras faixas de som).
É possível também programar via Ableton efeitos para momentos específicos de instrumentos e vozes que serão executados.
Ou seja: dá para colocar AutoTune, programa de afinação automática, na voz do cantor ao vivo.
"É uma ajuda para uma performance vocal mais consistente. Se usam AutoTune no estúdio, em que o cantor está totalmente concentrado, quanto mais em um show, em que ele faz outras coisas, sem atenção total para o vocal", defende Fabian.
Vozes de apoio
O mais comum é que haja vozes pré-gravadas de apoio — muitas vezes feitas pelo próprio cantor —, por trás do vocal ao vivo.
Não é difícil flagrar cantores em festivais que usam os vocais pré-gravados mais altos do que a própria voz ao vivo. Foi o caso do cantor emo adolescente Jxdn, que pulava no palco do Lollapalooza 2022 enquanto o vocal principal ficava por conta do playback.
Mas, em geral, a voz gravada fica mais ao fundo.
Chitãozinho e Xororó, por exemplo, só aceitam playback quando reproduzem sons de músicos que não estão no show.
"Se está no palco, tem que valer o que está lá", diz Cláudio Paladini, diretor musical da dupla.
"É como acrescentar efeito especial no cinema", ele compara. "Tenho receio do uso de coisas pré-gravadas quando o artista engana o público. Isso nós nunca fazemos."
O recurso já foi usado de forma muito mais brusca. É o caso de um dos momentos mais importantes da história do Rock in Rio, em 1985, durante a música "Bohemian Rhapsody", do Queen.
Pode procurar em vídeos lá dos anos 80: na hora em que ópera tocava, o Queen parava, apagava a luz do palco, começavam efeitos de luz e fumaça, e rolava o playback. Cláudio Paladini diretor musical
Perdido na transmissão
Todo o trabalho pode ir por água abaixo em transmissões de grandes eventos. O playback tão bem planejado pode virar uma bagunça.
"Mesmo que o som chegue perfeito para o público, agora muita gente vê os shows online e na TV", explica Fabian.
"Meu som sai de lá e vai para um carro de transmissão, onde um cara aleatório mexe na cabeça dele."
"Minha experiência em festivais, incluindo o Lollapalooza, é que essa mixagem fica muito ruim. Estraga o show inteiro. Alguns artistas grandes pagam uma pessoa só para ficar no carro de transmissão e orientar. Mas a maioria não. Fico bravo com isso todo ano", reclama o engenheiro de playback.
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