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Ricardo Nunes fez ato de campanha que viola lei eleitoral

O prefeito Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição, fez um ato de campanha que viola a lei eleitoral: discursou em uma associação abrigada num equipamento público, na zona norte de São Paulo.

A lei eleitoral diz que, durante as eleições, agentes públicos não podem usar bens móveis ou imóveis que pertencem à administração pública para beneficiar candidatos.

Especialistas ouvidos pelo UOL citam ao menos três possíveis infrações do prefeito neste caso:

  • Artigo 73, incisos 1º e 10, da lei 9.504: define condutas proibidas para "não afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos";
  • Artigo 24 da lei 9.504: proíbe candidatos de receber "direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro" de órgão da administração pública e certas entidades;
  • Resolução 23.735 do TSE: proíbe candidatos de comparecer a inaugurações de obras públicas ou eventos similares.

Segundo a legislação, essas violações podem ter consequências que variam de multa (de R$ 5.320 a R$ 106.410) à cassação de candidatura.

A assessoria de imprensa da prefeitura confirmou que o endereço onde está a associação é uma área pública, mas ressaltou que a ilegalidade do ato deve ser respondida pela campanha de Nunes.

A assessoria da campanha informou que não vai se manifestar.

2024 | Nunes, Marília 'Leite' e Silvinho, na Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé
2024 | Nunes, Marília 'Leite' e Silvinho, na Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé Imagem: Reprodução

O que aconteceu

No dia 14 de setembro, Nunes visitou a Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé, na rua Luiz Pereira Rebouças, junto do candidato a vereador Silvinho (União Brasil), apadrinhado do atual presidente da Câmara Municipal de São Paulo, Milton Leite (União Brasil).

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Nunes e Silvinho foram recebidos pela presidente da associação, Marília de Souza, que se identifica no Instagram como Marília Leite.

Ela é ligada a Milton Leite, um dos principais aliados de Nunes e um dos alvos da Operação Fim da Linha.

Leite é investigado por suposta relação com a empresa de ônibus Transwolff, que é acusada pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo) de lavar dinheiro para a facção criminosa PCC.

Há vídeos e fotos do evento, publicados nos perfis dela, de Nunes e de Silvinho.

2024 | Nunes, Marília 'Leite' e Silvinho, na Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé
2024 | Nunes, Marília 'Leite' e Silvinho, na Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé Imagem: Reprodução

O pátio em que os políticos discursaram tinha bandeiras, bexigas, adesivos e outros materiais de propaganda política.

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O ato não poderia ter ocorrido no endereço, segundo especialistas ouvidos pelo UOL.

Isso porque, segundo documentos publicados pela própria prefeitura, trata-se de um equipamento público.

Procurada pela reportagem, a campanha de Silvinho afirmou que o candidato "desconhece qualquer questão ligada ao imóvel ocupado pela associação".

Por que é ilegal

Entre 2020 e 2021, o endereço teve uma obra de R$ 1,3 milhão paga pela Prefeitura.

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Diário Oficial cita obra 'de equipamento público localizado na rua Luis Pereira Rebouças'
Diário Oficial cita obra 'de equipamento público localizado na rua Luis Pereira Rebouças' Imagem: Reprodução

Foi contratada uma construtora, via licitação, "para realizar obras de requalificação, readequação e ampliação de equipamento público localizado na Rua Luis Pereira Rebouças, nº 229", conforme foi publicado no Diário Oficial.

Um dos documentos cita que a "requalificação da área pública" inclui reforma de quadra e construção de edificações.

Durante o processo licitatório, o nome da associação não é citado. Mas, no Instagram, o perfil @associacaosantafe publicou diversas fotos da obra.

Foto da obra paga pela Prefeitura de SP, no perfil da associação no Instagram
Foto da obra paga pela Prefeitura de SP, no perfil da associação no Instagram Imagem: Reprodução
Foto da obra paga pela Prefeitura de SP, no perfil da associação no Instagram
Foto da obra paga pela Prefeitura de SP, no perfil da associação no Instagram Imagem: Reprodução
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"O endereço é um equipamento público. O ato realizado num equipamento desses é ilegal. Viola o artigo 73, inciso 1º, da lei 9.504", diz o advogado Fernando Neisser, professor de direito eleitoral da FGV.

Trata-se de conduta vedada e pode levar à aplicação de uma multa e, no limite, a depender da gravidade entendida pela Justiça eleitoral, à cassação de registro, diploma ou mandato da autoridade pública envolvida

Fernando Neisser, advogado e professor da FGV

"A lei eleitoral é taxativa tanto quanto à ilegalidade na fixação de materiais de campanha quanto à realização de atos de campanha em bens públicos", afirma o advogado Luiz Eduardo Peccinin, especialista em direito eleitoral e membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político).

"Isso se aplica não somente aos que pertencem à administração, mas também àqueles privados que estejam à disposição do poder público ou sejam sede de serviços públicos, sob qualquer forma."

No dia 25 de julho deste ano, a Prefeitura publicou uma lei que novamente se refere ao endereço da Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé como área pública.

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Lei 18.176 cita a concessão da 'área municipal situada na Rua Luiz Pereira Rebouças'
Lei 18.176 cita a concessão da 'área municipal situada na Rua Luiz Pereira Rebouças' Imagem: Reprodução

A lei 18.176 autorizou o Poder Executivo a ceder a "área municipal situada na Rua Luiz Pereira Rebouças nº 227 ao 229 - Jardim Santa Fé/Morro Doce, [...], para a Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé, para o fim de promover atividades culturais, esportivas, de lazer e assistenciais".

A concessão também pode ferir o inciso 10 do artigo 73 da lei eleitoral, que diz que, no ano eleitoral, "fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública".

O advogado Arthur Rollo, especialista em direito eleitoral e administrativo, afirma que situações assim também podem se encaixar no artigo 24, que proíbe partidos e candidatos de "receber direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro", procedente de órgão de administração pública ou de entidade.

Isso pode configurar abuso de poder econômico, diz Rollo.

O fato de, na origem, a associação ter recursos públicos é um agravante. O endereço não deixa de ser público apesar da concessão a um ente privado, o que significa que não poderia ser cedido [para um evento político]

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Arthur Rollo, advogado

"Por exemplo, há campos de futebol que são cedidos para associações de esportes, então também não pode fazer propaganda política dentro", exemplifica.

O UOL esteve no endereço. Não há sinalização indicando se é uma associação particular ou um prédio público.

O advogado Rodrigo Gomes Monteiro, que faz consultoria jurídica em eleições desde 2000, afirma que violações do artigo 73 da lei eleitoral podem ter punições que variam de multa (de R$ 5.320 a R$ 106.410) à cassação de candidatura.

Também cita o artigo 22 da resolução 23.735 do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que diz que a realização de eventos como esse pode configurar abuso de autoridade.

"Contudo, diante dos elementos concretos do caso específico, não vislumbro gravidade suficiente para atrair a pena mais grave, sendo razoável a imposição da multa", avalia.

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2022 | Nunes e Marília 'Leite' na Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé
2022 | Nunes e Marília 'Leite' na Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé Imagem: Divulgação

Quem é Marília 'Leite'

Marília se define como "CEO" da Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé.

No Instagram, ela costuma usar dois bordões: "Marília falou tá falado", que inclusive dá nome ao bloquinho de Carnaval da associação; e "Não tem segredo, tem trabalho", o slogan de Milton Leite.

Foi esse slogan que ela publicou, por exemplo, na legenda de um post de 6 de julho divulgando a Praça da Mulher, também no Jardim Santa Fé.

"Lá por intermédio da Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé, que pediu a indicação de emenda parlamentar ao vereador Milton Leite foi feito [sic] a construção de quadra de futebol, instalação de playgraund [sic] e equipamentos de ginástica, construção de escadão, instalação [de] mesas, bancos, passeios e jardim", escreveu.

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2022 | Milton Leite, Nunes, Marília e Silvinho na Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé
2022 | Milton Leite, Nunes, Marília e Silvinho na Associação de Mulheres do Jardim Santa Fé Imagem: Reprodução

Leite e Nunes visitaram a associação em 28 de junho de 2022, conforme agenda oficial publicada no site da Prefeitura.

Isso quer dizer que a associação já estava instalada no endereço antes da concessão, que só foi publicada em 25 de julho deste ano.

Procurada, a Prefeitura afirmou que não possui contrato ou convênio com a associação. "As concessões administrativas de áreas públicas são um instrumento legítimo do município e atendem rigorosamente a legislação vigente."

Entre as atividades da associação divulgadas na internet há desde distribuição de cestas básicas a sorteio de kit de maquiagem infantil.

A associação foi aberta em 1994. O CNPJ está inapto na Receita Federal, segundo consulta realizada em 25 de setembro deste ano, por "omissão de declarações".

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O UOL não conseguiu contato com Marília. O espaço segue aberto para manifestações.

*Colaborou Flávio VM Costa

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