Justiça por Marielle é enfrentar o crime organizado do RJ, diz sobrevivente
Única sobrevivente do crime que matou a vereadora Marielle Franco (PSOL) e o motorista Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018, no centro do Rio, a assessora de imprensa Fernanda Chaves, 50, teve a vida virada de cabeça para baixo.
Em questão de dias, teve de sair do Brasil com a família e conviver com os traumas deixados pelo atentado. Mas ela não deixou de acompanhar as investigações e lutar para que os assassinos e seus mandantes fossem condenados.
Fernanda é a principal das nove testemunhas que prestarão depoimentos no júri popular dos ex-policiais militares Ronnie Lessa, 54, e Élcio de Queiroz, 51, réus confessos no duplo homicídio.
O julgamento começa nesta quarta-feira (30), no 4º Tribunal do Júri do Rio, e o MP (Ministério Público) busca a condenação máxima, que pode chegar a 84 anos de prisão.
"Fazer justiça para Marielle, além de julgar e condenar os seus executores, é ir além. É responsabilizar e condenar os mandantes e aprofundar o enfrentamento ao crime organizado que está acabando com o Rio", diz ela, em entrevista ao UOL.
Passados seis anos e sete meses do duplo homicídio que chocou o Brasil, Fernanda afirma que o crime organizado foi descortinado durante o processo.
"Veio à tona um esgoto. O Rio está tomado por criminosos. Eles estão entranhados nas instituições. No parlamento, nas polícias, nas iniciativas privadas. Ficou claro que há crime organizado em tudo", diz.
Impactos na vida
Fernanda Chaves conhecia Marielle havia 12 anos e trabalhava como sua assessora de imprensa. Eram amigas, vizinhas, comadres e se admiravam mutuamente.
O primeiro impacto foi o luto mal vivido. Ela deixou o Brasil com auxílio da Anistia Internacional e não pôde se despedir da amiga. Deixou o Rio sem saber se voltaria, rumo a um país que marcava temperaturas frias históricas.
"Eu não queria sair daqui. Queria acompanhar a investigação. Ir à missa de sétimo dia. Queria abraçar os pais da Marielle, participar da marcha na Maré. Queria viver isso e não podia. Estava longe tentando dar conta da minha saúde e a da minha família", afirma Fernanda.
A assessora diz que não conseguia desfazer a mala ao chegar a seu destino.
"Achava que, a qualquer momento, o crime seria elucidado, que aconteceria alguma coisa e que eu poderia voltar. E isso não acontecia. Foram passando dias", relembra.
Fernanda foi incluída no programa de proteção a defensores de Direitos Humanos ao voltar ao Brasil.
Ela afirma que o programa ficou inseguro com o início do governo de Jair Bolsonaro (PL), em 2019, quando a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves (Republicanos), quis a quebra dos dados sigilosos de protegidos.
A assessora teve de escolher uma cidade distante do Rio para viver no retorno ao Brasil.
"Voltei a trabalhar na Câmara, mas a gente sempre soube que esse crime foi planejado na política. Então, pensava: 'Nossa, posso estar respirando o mesmo ar das figuras que pensaram esse crime, que desejaram esse assassinato'."
Outra decisão foi sobre a casa em que poderia morar. "Eu precisava morar com especificidades, com recomendações, que, além de encarecerem a vida, me impossibilitavam de viver onde eu queria", diz.
Desde então, ela retornou apenas algumas vezes ao Rio. "Não me sinto segura nem feliz na cidade. E isso tem um impacto enorme. Atrapalha muito a minha vida e a da minha família", afirma.
Claro, há vida acontecendo, há projetos, há trabalho, há casamento, há viagens. A minha vida está acontecendo. Mas não há normalidade. Nunca mais haverá.
Fernanda Chaves
O início das investigações
Marielle foi assassinada indo para casa após o trabalho, debaixo de câmeras de vigilância. O estado do Rio estava sob intervenção federal militar devido à falta de segurança pública.
"Esse atentado contra a Marielle, que vitimou o Anderson também, é o maior atentado político, o maior crime, de maior relevância, da história recente do Brasil."
Fora do país, a assessora passou a acompanhar a investigação via noticiário.
"De repente, o assunto começou a rarear na mídia. As outras pautas do Brasil começaram a se sobrepor, como a prisão do Lula", relembra.
Exatamente um ano depois, em 2019, a Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz.
"Ali começou a surgir uma nova esperança para que a justiça fosse feita. Ficou muito claro que havia um mando por trás do atentado."
A assessora diz ter ficado angustiada pelo que classifica de "desqualificação e menosprezo da vida de Marielle" pelo então governo federal, de Bolsonaro.
"Apesar disso, o Ministério Público do Rio estava atuando. Em 2019, duas promotoras entraram no caso, e a gente começou a te um processo caminhando, após as prisões, para um futuro julgamento."
Entre 2021 e 2022, no entanto, as promotoras saíram do caso alegando interferência. "Houve uma reviravolta, e a coisa parou."
De lá para cá, foram anos de total silêncio sobre esse processo. As famílias também não tinham acesso aos autos. Foram anos que beiraram o limite do inaceitável.
Fernanda Chaves
Muda governo, muda investigação
Já durante o governo Lula, em 2023, o então ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou a criação de uma força-tarefa da Polícia Federal para acompanhar o caso. Foi uma virada de chave na investigação.
"Começou a se ver uma investigação em curso de novo. Logo depois, houve o anúncio do acordo de delação premiada com esses até então acusados [Lessa e Queiroz]. Eles confessaram o crime e se tornaram réus e passaram a colaborar", diz Fernanda.
A Polícia Federal apontou no relatório final o envolvimento do delegado Rivaldo Barbosa, que havia assumido a chefia da Polícia Civil um dia antes do duplo assassinato.
"Isso deixou claro que esse era um crime completamente possível de ter sido esclarecido não fosse uma atuação paralela para atrapalhar", entende a assessora.
Primeiro passo para justiça
Fernanda Chaves diz que o júri previsto para iniciar nesta quarta-feira é "o primeiro passo para que se comece a fazer justiça por Marielle e Anderson".
"A ação penal que está julgando os mandantes está no STF. Isso não pode ser esquecido. A gente está chegando na fase final de audiências de instrução, que está durando três meses."
O Supremo Tribunal Federal julga os mandantes porque um dos acusados, Chiquinho Brazão (sem partido), é deputado federal e, por isso, tem foro especial.
"Acho que a busca por justiça por Marielle não se encerra aí. Esse julgamento está dando a oportunidade para o Brasil de mostrar que não aceita o que aconteceu", avalia.
Vamos mostrar para o mundo que aqui não é o lugar da impunidade e nem da injustiça. Que o legado que Marielle deixa é enorme, do tamanho dela.
Fernanda Chaves
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