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Advocacia predatória atinge 30% das ações no país e gera custo bilionário

Três em cada dez ações cíveis nos tribunais dos estados são consideradas advocacia predatória, segundo projeção feita pelo CIJMG (Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais).

Essa prática, conhecida no meio jurídico como litigância predatória, consiste em uma das partes abusar do direito de entrar com ações, quase sempre com argumentos fraudulentos, para obter ganhos ilícitos e sobrecarregar o Judiciário.

No entendimento dos tribunais e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), essas ações são superficiais, procrastinatórias ou até fictícias.

Ações desse tipo custam R$ 12,7 bilhões por ano às cortes do país, segundo análise do TJ-MG divulgada em abril de 2022, baseada em relatório do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Os tribunais estão preocupados com essa conta, já que uma das características da advocacia predatória é o pedido de Justiça gratuita —quem entra com a ação diz que não pode pagar pelo processo.

Despesas desse tamanho indicam a existência de um mercado bilionário para o modelo, que segundo o CIJMG prioriza a área de direito do consumidor.

Os setores de varejo e bancário estão entre os mais afetados.

"Todas as empresas que cuidam de muitas vidas são alvo de advocacia predatória. Bancos e varejo, principalmente, mas também telefônicas, seguradoras, companhias aéreas", afirma o advogado Daniel Gerber, especialista em advocacia corporativa de massa.

Não há dados oficiais, mas o executivo de uma grande varejista disse ao UOL que o setor deve gastar perto de R$ 5 bilhões por ano com ações do tipo, entre causas cíveis e trabalhistas.

Esses casos interessam a escritórios que apresentam centenas de ações idênticas, para garantir algum ganho com o volume de pedidos.

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Um exemplo de abuso que chamou atenção das cortes federais é um caso de 2022 do TJ-MS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul).

A Corte Especial do STJ (Superior Tribunal de Justiça) julga um recurso contra a decisão do tribunal estadual com o objetivo de definir uma tese contra a litigância predatória.

Entre janeiro de 2015 e agosto de 2021, o TJ-MS recebeu 64.037 ações sobre empréstimos consignados. Desse total, 43,6% processos foram patrocinados por um único escritório.

"Em todos, a petição inicial desenvolveu narrativa hipotética, relatando que a parte autora não se recorda se celebrou o empréstimo", conforme os autos do caso no STJ.

O relator do processo, ministro Moura Ribeiro, votou em fevereiro de 2024 para permitir que o juiz, ao perceber indícios de litigância predatória, peça à parte -e não ao advogado- que apresente documentos "capazes de lastrear minimamente" os pedidos feitos.

O julgamento está interrompido por pedido de vista.

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Imagem: Arte/UOL

São Paulo lidera gastos

O CIJMG fez a projeção sobre o alcance da advocacia predatória a partir da análise das ações dos principais temas em trâmite nas cortes dos estados —cláusulas contratuais e direito do consumidor.

Em seguida, estendeu os números para os demais assuntos e consultou outros tribunais, que confirmaram o número de 30% como patamar mínimo da atuação da advocacia predatória.

No custo de mais de R$ 12 bilhões apontado pelo TJ-MG, entram os processos comuns e os em tramitação nos juizados especiais, que julgam causas de até 40 salários mínimos.

São Paulo concentra mais de 10% desse valor.

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O TJ paulista gastou R$ 16,7 bilhões com ações predatórias entre 2016 e 2021, segundo estudo da Corregedoria do tribunal, também baseado no trabalho do Ipea. São R$ 2,7 bilhões por ano.

Em outubro de 2024, o CNJ ratificou esses dados e divulgou recomendação na qual pedia informações e documentos aos autores das ações para comprovar se o processo era legítimo.

A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) foi procurada pelo UOL, mas não respondeu aos pedidos de entrevista.

Advogados predadores

Responsável por quase 30% dos processos em trâmite no país, o TJ-SP monitora desde novembro de 2024 pessoas físicas que considera "grandes litigantes".

Entre janeiro de 2021 e agosto de 2024, as varas cíveis da capital paulista receberam 73,6 mil processos. Desses, 38%, ou 28 mil ações, foram ajuizadas por 37 escritórios. Os demais 45,6 mil processos foram ajuizados por 16,4 mil escritórios.

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É o que o tribunal tem chamado de "distribuição atípica", considerada outra característica da litigância predatória.

O tribunal disse ao UOL não poder informar quais foram esses escritórios.

Em maio de 2024, a Justiça da Bahia mandou a seccional local da OAB suspender as inscrições de quatro advogados que patrocinavam 32 mil processos no Juizado Especial do Consumidor do estado.

Também foram bloqueados R$ 309 mil em bens. O processo é sigiloso.

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Imagem: Arte/UOL

Corregedorias reagem

No dia 9 de janeiro deste ano, a Corregedoria do TRT-RJ (Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro) instaurou procedimento para avaliar se um grupo de advogados ligados ao escritório do advogado Marcos Roberto Dias pratica advocacia predatória.

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Há a suspeita que esse grupo de advogados tenha ajuizado ações idênticas e com documentos falsos contra as Casas Bahia.

O procedimento foi aberto a pedido da própria varejista, que apresentou à Corregedoria uma série de sentenças nas quais reconheceram a atuação predatória dos advogados:

  • pedidos de indenização idênticos;
  • mesmo número de horas extras trabalhadas, mas não pagas;
  • mesmo número de dias de férias não gozadas, mas não indenizadas;
  • ameaça a testemunhas;
  • captação agressiva de clientes.

Em dezembro de 2023, a Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro já havia multado Dias em R$ 1,7 milhão por "conduta temerariamente fraudulenta" em processos trabalhistas contra as Casas Bahia.

O juiz também mandou ofícios para as empresas Ri Happy, Magazine Luiza, Lojas Renner e Pão de Açúcar para que avaliem se também estão sendo vítimas.

Ele constatou que a soma das indenizações pedidas nas ações contra as companhias somava R$ 12 milhões, uma média de R$ 447,1 mil por processo.

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Os pedidos desse tipo de ação na vara costumam girar em torno de R$ 80 mil.

Dias depois da decisão do TRT do Rio, a Corregedoria do TRT de Minas adotou medida parecida contra o mesmo grupo.

Em 14 de janeiro, enviou ofícios a todos os juízes de primeira instância perguntando se eles identificaram indícios de litigância predatória desses advogados.

Em nota ao UOL, Marcos Roberto Dias afirma que a acusação faz parte de uma estratégia das Casas Bahia com o "único e exclusivo objetivo de rotular e manchar a imagem do escritório (perante clientes e o Judiciário) e tentar não perder os processos".

Dias diz que as sentenças usadas nos pedidos de abertura de investigações contra seu escritório já foram reformadas em segunda instância e que outra corte, o TRT do Rio Grande do Sul, também negou que seu escritório praticasse advocacia predatória.

Unidade das Casas Bahia
Unidade das Casas Bahia Imagem: Divulgação/Via Varejo
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Dentro da empresa

Um dos processos contra as Casas Bahia, ao qual o UOL teve acesso, mostra que os escritórios contam com ajuda até de empregados da companhia.

De acordo com uma testemunha, um profissional demitido por justa causa foi interpelado por outro empregado ainda na saída do departamento de Recursos Humanos.

O profissional demitido recebeu do colega um cartão de visitas do escritório Solon Tepedino. A orientação foi procurar a banca e dizer o nome de quem a indicou, que tudo seria encaminhado.

A reportagem procurou o escritório, mas não teve retorno.

Mas, na maioria dos casos trabalhistas, é o escritório quem procura ex-empregados para assinar petições já prontas.

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O empresário Paulo Malvezzi, dono de uma empresa de tecnologia que presta serviços às Casas Bahia, complementa o relato: a pessoa é procurada pelo escritório, mas informa que não tem documentos suficientes para ajuizar uma ação trabalhista.

O escritório, então, informa que já tem todos os documentos e o trabalhador só precisa assinar a procuração.

"São planilhas com tabelas de horas trabalhadas, com todas as horas extras computadas. Só que são tabelas falsas. O escritório apenas troca o nome do trabalhador e entra com a ação", conta Malvezzi ao UOL.

Em setembro de 2023, Malvezzi contratou o advogado Guilherme Fleury para tentar resolver o problema. De lá para cá, Fleury contabiliza que trabalhou em cem processos. Segundo ele, 99 eram iguais.

Além de falsificação de documentos e procurações, Fleury constatou uma triangulação nesses casos. Em um processo, uma pessoa é parte e a outra, testemunha. No outro, há inversão de papéis.

Advocacia de massa contra advocacia predatória

O escritório do advogado Daniel Gerber é especializado em advocacia corporativa de massa. Defende empresas que respondem a milhares de processos sobre os mesmos assuntos cotidianamente.

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"As defesas são parecidas, porque os pedidos são quase iguais. Mas as petições de quem reclama não são iguais", explica Gerber.

Hoje, segundo ele, isso significa advogar contra a litigância predatória. Responsável por mais de 90 mil processos, Gerber acha baixa a estimativa de 30% do estudo divulgado pelo TJ-MG.

Ele diz que enviou ofício ao Conselho Federal da OAB no início de 2025 para reclamar de "atitudes suspeitas" de advogados que patrocinam ações contra seus clientes. Gerber diz que nunca teve resposta.

Segundo o diretor jurídico da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), Vicente de Chiara, oito instituições financeiras disseram à entidade que respondem a 300 mil ações consideradas abusivas.

Em outra consulta, dessa vez a quatro bancos, Chiara descobriu que essas instituições gastavam R$ 500 milhões por ano com ações predatórias.

Uma das atuações comuns contra bancos, segundo Gerber, é usar correspondentes bancários. Os correspondentes pegam os dados de quem compra algum produto bancário e usam as informações para ajuizar ações em massa contra bancos e seguradoras sem que a pessoa saiba.

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Foi o caso de uma organização criminosa condenada em 2023 em São Paulo por fraude, corrupção e coação.

Segundo a denúncia, a organização falsificava documentos como sentenças, atos policiais e ordens bancárias para levantar valores em nome de terceiros que não sabiam que eram usados por um esquema.

Segundo o Ministério Público de SP, foram 500 vítimas lesadas em três mil processos falsos. Duzentas pessoas foram presas.

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