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Escreventes de cartórios vivem limbo jurídico e não têm direito a rescisões

Cartórios tiveram arrecadação recorde ano passado e seus titulares são a classe profissional mais bem paga do país, mas os funcionários dessas instituições estão em um limbo jurídico que os priva de alguns direitos trabalhistas.

Mesmo sob o regime CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), os mais de 100 mil funcionários de cartórios no país não têm piso salarial e, se demitidos quando há troca de titular, não ganham rescisão, seguro-desemprego ou saque do FGTS.

Isso ocorre porque, desde 2009, uma instrução normativa da Receita Federal determinou que os funcionários devem ser registrados não no CNPJ dos cartórios (pessoa jurídica), mas no CPF dos titulares (pessoa física).

Se um titular deixa a unidade (por morte, aposentadoria, afastamento ou qualquer outro motivo), o novo titular que assume após concurso não é obrigado a manter o quadro antigo de funcionários.

Mas, se demitidos sem justa causa, os funcionários não conseguem baixa imediata na carteira de trabalho e não têm a quem recorrer para receber as rescisões: nem ao CNPJ do cartório, nem ao CPF do antigo titular, nem ao Estado.

De acordo com a legislação atual, nenhuma dessas esferas pode ser responsabilizada.

"É um limbo jurídico", diz o advogado José Ferreira Campos Filho, que representa o Seanor-SP (Sindicato dos Escreventes e Auxiliares Notariais e Registrais do Estado de São Paulo).

Campos Filho considera "desumana" a condição dos cartorários (trabalhadores de cartórios, entre escreventes e auxiliares).

É uma situação singular híbrida. Quando a questão é discutir responsabilidade civil, criminal e administrativa do que acontece num cartório, valem para os funcionários as regras do direito público; mas, quando a questão é trabalho, incidem as regras do direito privado, que deixam os funcionários vulneráveis. Beira a escravidão atualizada

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BRASIL DOS PRIVILÉGIOS

Um raio-X das vantagens de quem está no topo das carreiras no Estado brasileiro

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José Ferreira Campos Filho, advogado, ao UOL

Essa situação contrasta com o sucesso financeiro dos cartórios do país —no ano passado, o setor teve uma arrecadação recorde de R$ 31,4 bilhões.

Já os titulares de cartório são os profissionais mais bem pagos do país, com renda média mensal de R$ 156 mil, segundo dados da Receita Federal.

Isso é possível porque os titulares de cartórios não são considerados funcionários públicos e, portanto, não estão sujeitos ao teto do funcionalismo público (o equivalente ao salário de um ministro do STF, que hoje é de R$ 46 mil).

Hoje, cerca de 8.300 dos 11.686 cartórios são ocupados por titulares —os demais são interinos.

Isso significa que há titulares que têm o privilégio de altos rendimentos contando com uma "reserva de mercado" (a demanda por documentos que só podem ser obtidos nas unidades).

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Lobby por direitos

Diante do impasse sobre seus direitos, cartorários têm procurado soluções na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), no Congresso Nacional e no CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Representantes da classe encontraram o deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL-SP) para contar a história no ano passado.

"É inacreditável. Em pleno século 21, é um absurdo os trabalhadores não terem direitos elementares do trabalho", afirma Giannazi ao UOL. "A legislação é falha", completa.

Em abril de 2024, o parlamentar fez uma audiência pública e propôs um projeto de lei sobre o assunto, que tramita na Alesp.

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[Cartorários] dedicaram a vida a um serviço público, um serviço considerado essencial à sociedade, e foram demitidas sem direito do trabalho. Diferentemente de qualquer trabalhador de qualquer empresa, elas ficaram sem receber nada [...] e simplesmente não têm a quem recorrer. Elas perderam direitos

David Balthazar, cartorário, na audiência pública na Alesp

Em julho de 2024, foi feita outra audiência pública na Câmara dos Deputados, junto à deputada federal Luciene Cavalcante (PSOL-SP).

"É como se nós fôssemos empregados domésticos do tabelião", afirmou na ocasião a presidente da Associação Paulista dos Aposentados de Cartórios Extrajudiciais, Darlene Mattes, referindo-se ao vínculo empregatício com o CPF do titular e não com o CNPJ do cartório.

Cavalcante também fez um projeto de lei para alterar a Lei dos Cartórios, mas a iniciativa não avançou no Congresso.

Em janeiro deste ano, a Corregedoria-Geral da Justiça do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) publicou uma norma que determinou a abertura de um fundo abastecido com recursos arrecadados pelos cartórios para garantir o pagamento de rescisões.

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Em fevereiro deste ano, entretanto, o CNJ atendeu a um pedido da Anoreg-BR (Associação dos Notários e Registradores do Brasil), uma das maiores associações de classe do setor, e derrubou a norma de São Paulo.

Há milhares de funcionários de cartório no Brasil que se desligaram depois de 10, 20, 30 anos de serviço, que estão sem receber absolutamente nada. Está sendo finalizado agora o 13º concurso de cartórios no estado de São Paulo. Mais de 200 cartórios, então cerca de 2.000 funcionários também estarão nessa situação em breve. Nós não estamos brigando com titulares, com juízes, com ninguém. Só estamos buscando soluções

Sérgio Ricardo Betti, cartorário, ao UOL

Hoje, a renda média de um titular de cartório no estado de São Paulo é R$ 281 mil, segundo dados do CNJ.

No primeiro semestre deste ano, também de acordo com o CNJ, os cartórios paulistas arrecadaram mais de R$ 4,4 bilhões.

Já a renda média dos funcionários comuns, segundo o sindicato, é menor que o salário mínimo de São Paulo (R$ 1.804).

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Em junho deste ano, o advogado José Ferreira Campos Filho incluiu nas reivindicações à Justiça do Trabalho um pedido de piso salarial de R$ 2.058 para auxiliares.

"No estado de São Paulo, um fundo para garantir rescisões de 0,25% da receita líquida dos titulares corresponde a cerca de R$ 5 milhões por mês", diz Campos Filho, que também reivindica uma regulamentação imediata do CNJ a nível nacional.

O que diz a Anoreg-BR

Procurada, a Anoreg-BR afirma que "todos os titulares de cartórios são, por força da Lei Federal nº 8.935/1994, integralmente responsáveis pela gestão administrativa e financeira de suas unidades, incluindo as obrigações trabalhistas com seus funcionários — exatamente como ocorre em qualquer atividade econômica no Brasil".

Leia a íntegra da nota da associação à reportagem do UOL.

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