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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Acusado de plágio por usar ChatGPT, aluno cai em episódio de 'Black Mirror'

Annie Murphy é Joan em "Joan é Péssima", de "Black Mirror" - Nick Wall/Netflix
Annie Murphy é Joan em 'Joan é Péssima', de 'Black Mirror' Imagem: Nick Wall/Netflix

Colunista do UOL

30/06/2023 04h00

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No primeiro episódio da nova temporada de "Black Mirror", uma executiva se espanta ao ligar a TV e descobrir que uma plataforma de streaming transformou sua vida privada em uma série de sucesso.

O assombro praticamente a transforma na personagem da música de Roberta Flack, que ao ouvir uma música sente que o intérprete encontrou suas cartas e as leu em voz alta, dedilhando sua dor e a matando suavemente em cada verso (ou capítulo).

A protagonista do episódio demora a entender como momentos íntimos de sua rotina, com suas falhas expostas, dramatizadas e pioradas, foram parar na tela. Mas descobre que, ao assinar o serviço de streaming, concordou em atuar como consumidora e fornecedora de conteúdo. Mais ou menos como quando alguém manifesta um desejo em voz alta e passa a ser bombardeado por propagandas direcionadas pelo celular, que nos ouve.

Na distopia metalinguística da Netflix, o drama da privacidade violada se transforma em uma busca kafkiana para determinar quais direitos e responsabilidades estão envolvidos na produção audiovisual. Aquela história é de quem? Das atrizes (sim, no plural) que interpretam aquela personagem? Da personagem que inspirou a história e se deixou vigiar? Dos produtores que levaram o drama para a tela? Da plataforma que se apropriou do roteiro? Dos fabricantes que deram vida àquela tecnologia?

Em outras palavras: existe plágio num mundo em que aceitamos compartilhar tudo com todo mundo o tempo todo? Se sim, quem plagiou quem?

Pois as ferramentas de inteligência artificial parecem ter acelerado em alguns anos a distopia futurista.

Dias atrás, uma engenheira de computação compartilhou no Twitter a história do tio, que, segundo ela, está terminando a graduação, redigiu o trabalho de conclusão de curso e foi "dedurado" pelo ChatGPT. A plataforma havia dito ao professor que aquele texto era de sua autoria (do ChatGPT).

O estudante, sempre segundo o relato da tuiteira, precisou chamar uma reunião com a banca avaliadora para provar que o ChatGPT não era ferramenta de plágio. "Além de todo sofrimento e da falsa acusação, meu tio está tendo que fazer algo que não cabe a ele: provar que o ChatGPT é falho", relatou a estudante, que no Twitter usa o perfil @carollingian.

A história viralizou. Como numa série, os espectadores de fios e novelos produzidos no Twitter ficaram curiosos para saber como a epopeia acabaria. E o desfecho foi que o tio conseguiu "provar a inocência", mostrando que um trabalho de autoria do próprio professor que o acusou também foi dedurado como plágio no programa de inteligência artificial. O TCC então foi aprovado e o rapaz conseguiu se formar.

Diferentemente do que os fãs de séries e filmes policiais poderiam imaginar, o perdão não aconteceu porque ambos, professor e aluno, tinham uma arma apontada um para outro, como numa cena de "Cães de Aluguel", de Quentin Tarantino.

Não, o professor não cometeu o mesmo pecado que acusava o estudante; pelo contrário: era outra vítima da mesma ferramenta.

Como?

Um outro usuário do Twitter ouviu história parecida (na realidade, pode ser até a mesma história) e resolveu testar a ferramenta. Jogou no ChatGPT um trecho de um artigo de sua autoria que nunca passou pela IA. Em seguida perguntou quem escreveu o texto. A Inteligência Artificial disse que foi ela. Corrigida e sob protestos do autor, mudou a versão: passou a dizer que não, não era autora do trecho.

A conclusão, escreveu ele, é que IA não é oráculo nem fonte de informação, mas uma ferramenta de geração de texto sem compromisso com a verdade. Mas os textos saem de lá com uma linguagem tão natural que ganha esse status, mesmo quando não têm lógica ou sentido.

"Vai dizer que você não conhece alguém que fala bem pra c... mas não faz a menor ideia do que tá falando? Pois é: o ChatGPT hoje é isso, a versão computadorizada do bom de papo da rua", escreveu o tuiteiro, identificado por lá como @lucas_ed

Para professores e profissionais preocupados com a suposta ousadia de estudantes e colaboradores em usar a ferramenta em seus trabalhos, existe uma maneira mais fácil de identificar se algum texto passou sem filtro pela ferramenta ou não: geralmente é quando as informações sobre algum evento ou personagem estão cheias de furos.

Foi o que descobriu o gerente de uma agência de comunicação, ao pedir a um estagiário uma pequena biografia de alguns clientes, entre eles uma atriz, um médico e o dono de uma empresa de cosméticos. Resultado: a atriz, por pouco, não descobriu que era estrela de novelas das quais nunca participou. O médico dermatologista virou referência em tosse. E o empresário virou padeiro.

Por sorte, a inteligência natural barrou a invenção com um exercício simples de checagem. Sim, nessa vida de tantas possibilidades, todos nos tornamos um pouco repórteres investigativos.

Caso contrário, os clientes deveriam provar que não eram quem a ferramenta dizia que eles eram, abrindo assim um vórtice que certamente acabaria numa distopia típica de "Black Mirror".

Quem é o dono da história, afinal? E quais as responsabilidades de quem se apropria dela?

São as mesmas perguntas levantadas no primeiro capítulo da série.

Do lado de cá, o futuro da IA é uma roupa que ainda não aprendemos a vestir. Ainda.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL