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Alvim e Goebbels: até que ponto tudo é uma 'infeliz coincidência retórica'?

Roberto Alvim, secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro - Clara Angeleas/Divulgação/Secretaria Especial da Cultura
Roberto Alvim, secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro Imagem: Clara Angeleas/Divulgação/Secretaria Especial da Cultura

Marie Declercq

17/01/2020 13h39

Na noite de quinta-feira (16), Roberto Alvim fez um pronunciamento de um pouco menos de sete minutos sobre os rumos da cultura brasileira, área para a qual foi nomeado como secretário especial, em novembro de 2019. Para anunciar o Prêmio Nacional de Artes, ele usou uma passagem de um discurso proferido por Joseph Goebbels, ministro da propaganda na nazista de 1933 a 1945. Após políticos, instituições e a população brasileira repudiarem as semelhanças com o ideólogo alemão, Jair Bolsonaro decidiu demitir Alvim do cargo no começo da tarde desta sexta-feira (17).

Cercado pela bandeira do Brasil, uma cruz missionária e uma foto emoldurada do presidente Jair Bolsonaro, o secretário proferiu a seguinte frase antes de anunciar as categorias do prêmio Nacional de Artes: "a arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo — ou então não será nada".

Rapidamente foi descoberta uma semelhança com um discurso proferido por Goebbels para professores de teatro, para quem o ministro de Propaganda Nazista disse: "A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada".

Alvim defendeu o discurso e disse se tratar de uma "coincidência" e que "não há nada de errado com a frase". A declaração não acalmou nenhum ânimo, até porque fez questão de usar uma das composições de Richard Wagner como trilha sonora de seu pronunciamento, o prelúdio da ópera "Lohengrin". Wagner foi um dos compositores favoritos de Adolf Hitler e sua obra foi usada diversas vezes em solenidades e eventos da época.

"Não me parece uma coincidência", analisa Odilon Caldeira Neto, historiador e professor de História Contemporânea na UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). "Inclusive em termos estéticos, ainda mais se considerarmos a música de fundo, numa nítida emulação da propaganda típica do nazismo, inclusive da apropriação da obra de Wagner. Ainda que fosse uma coincidência, insisto que seria preocupante, afinal de contas, um governo com tendências autoritárias ter similaridades com o fascismo histórico é algo que devemos temer."

O discurso de Alvim e outras falas problemáticas de ministros do governo Bolsonaro representam, segundo Francisco Teixeira, um processo de radicalização acumulativa. "O processo de radicalização acumulativa mostra uma disputa de poder dentro do governo, com todo mundo tentando ser mais radical a partir das pistas que Bolsonaro dá", explica o professor titular de História Moderna Contemporânea da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e de História da Cultura de Poder na UFJF.

Para o historiador, a declaração não deve ser tratada como mera cortina de fumaça. "Aquilo não é ingênuo, tudo aquilo foi bem montado e pensado," diz. "O que ele anunciou também, o Prêmio Nacional da Cultura, é digno de nota. Esses prêmios poderiam ser promovidos por fundações ou instituições como a Biblioteca Nacional, mas nunca diretamente pelo Estado. Isso vai estatizar a cultura brasileira de uma forma terrível e está sendo feito da mesma forma que Hitler e Mussolini fizeram com a cultura da época."

Nomeado em novembro de 2019 para o cargo, o dramaturgo Roberto Alvim se destacou entre a classe artística de São Paulo ao apoiar o presidente Jair Bolsonaro após o atentado que sofreu durante a campanha eleitoral, em Juiz de Fora (MG). Suas publicações agressivas nas redes sociais já chamavam bastante atenção pelo posicionamento à direita e ataques feitos contra artistas como Fernanda Montenegro. Fundador da Cia. Club Noir, já montou espetáculos como "Tríptico Samuel Beckett" e "Leite Derramado", bastante elogiados pela crítica teatral.

Após o presidente estreitar relações com Alvim, o dramaturgo fez um chamado em seu Facebook de artistas de direita para criar, nas palavras do mesmo, "uma máquina de guerra cultural". A fala do ex-secretário também encontra ecos com o nazismo do Terceiro Reich, especialmente com a classificação e "arte degenerada" criada por Goebbels para selecionar que seria a arte para o governo nazista e censurar obras que não encaixassem nesse conceito. "Goebbels criou uma categoria de arte degenerada para eleger tudo aquilo que considerada verdadeiramente patriótica. O ministro de Propaganda Nazista também deu prêmios para fomentar essas obras, criando um processo de destruição da arte surrealista, expressionista e tudo aquilo que ele não considerava representante do nazismo", explica Teixeira.

Na mesma linha, Caldeira concorda que o discurso de Alvim tentou se comunicar com a extrema-direita por exaltar um modelo de sociedade, de cultura e de nacionalidade de um modo mais amplo. "É também um esforço para tentar padronizar a cultura brasileira em torno da exaltação de um tipo fascista de propaganda política", diz.

Para Teixeira, o discurso de Alvim também confirma um plano do governo e seus apoiadores referentes ao controle cultural do país. "Esse discurso é uma formulação ideológica do que vem acontecendo há bastante tempo, inclusive sem a presença de Alvim. Na verdade, ele é completamente dispensável para o que está acontecendo agora com a cultura, ele só é um elemento exibido. A máquina está funcionando no sentido de censurar e escolher o que o governo brasileiro acha que deve ser arte. E nós não estamos vendo nenhuma solução para isso."

"É um pastiche", analisa especialista em semiótica

Para Vinícius Romanini, semioticista e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o vídeo gravado por Alvim tentou copiar de forma rasa a estética criada por Goebbels como ministro de Propaganda Nazista. "É um pastiche, um delírio", diz. "Você vê que o próprio não possui nem estofo cultural para se colocar nessa posição. É algo memético, tipicamente feito pra reperticutir e reverberar como meme nas redes sociais como quase tudo que vem desse governo desde a campanha eleitoral".

Segundo o especialista, todos os elementos do vídeo apontam para uma tentativa frustrada de cópia de símbolos que não possuem nenhum tipo de identificação com a cultura brasileira. Desde a escolha do terno, das cores que compõem o vídeo, da trilha sonora e a Cruz de Caravaca, uma relíquia cristã usada por missionários ibéricos e lusitanos. No entanto, para Romanini, a falta de profundidade cultural de Alvim ao tentar se apropriar desses símbolos refletiu no vídeo. "Esse discurso é claramente uma cópia de outros discursos tirados de almanaques sobre o Goebbels, nem é um discurso que entra na profundidade de quem foi ele", explica.

"Você vê que o próprio não possui nem estofo cultural para se colocar nessa posição. É algo memético, tipicamente feito pra reperticutir, reverberar como meme nas redes sociais como quase tudo que vem desse governo desde a campanha eleitoral. É tudo uma provocação e fazer com que se crie polêmicas em torno do assunto porque o governo vive disso", finaliza.