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Luiza Sahd

OPINIÃO

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Imagem: Reprodução/ Instagram

Colunista do UOL

22/06/2023 09h10

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Poucas coisas no mundo envelheceram tão mal quanto a revolta perante uma traição. Com os novos modelos de relacionamento — abertos, não-monogâmicos, poliamorosos ou o famoso "negociável" —, apontar o dedo para um infiel implica, no mínimo, correr o risco de passar vexame e ser informado de que o combinado não sai caro. Isso seria uma ótima notícia se essa tal liberdade servisse a todos de forma democrática.

Nesta quarta-feira (21), a internet deu uma leve colapsada com a carta aberta de Neymar Jr. pedindo desculpas à companheira, que está grávida, por tê-la traído. Ele ressalta que "se um assunto privado se tornou público, o pedido de perdão tem que ser público". E ganhou muitas declarações de apoio de famosos (até um parabéns do pai!) pela atitude. Qual das atitudes? Fica a questão no ar.

Personalidades como o cantor Thiaguinho, o jogador Vini Jr., o apresentador Casimiro, o surfista Pedro Scooby e o ex-participante do reality "Casamento às Cegas", Alisson Hentges — que recentemente foi exposto traindo a esposa na internet — largaram um coraçãozinho na publicação do menino Ney. Eles e mais 10 milhões de fãs fizeram o mesmo até o fechamento deste texto.

A título de comparação — e para citar só incidentes locais —, a cantora Luísa Sonza passou, durante os últimos anos, por ataques virtuais constantes graças a uma suposta traição que até o ex-marido já garantiu não ter acontecido. Em um caso ainda mais absurdo, a crueldade com que a esposa de Arlindo Cruz foi tratada ao tocar a vida afetiva adiante, mas sem deixar de cuidar do marido acamado há seis anos, também é de perder a fé na humanidade. Isso sem contar os casos internacionais, aquele da sua vizinha, da minha, o meu ou o seu.

Com raríssimas exceções, todo mundo já traiu ou já foi traído, mesmo que não saiba disso. O bom da vida é nem ficar sabendo.

Pena que, nessa ciranda de volúpia e frustrações românticas, só as mulheres sejam vítimas contumazes de feminicídio e abusos do tipo quando traem. Na melhor das hipóteses, uma mulher que toma a mesmíssima atitude fica socialmente marcada.

Ao contrário do que acontece com elas, e por razões que estamos exaustos de saber, a traição masculina pode sempre ser usada como uma espécie de trampolim de reputação. Muita gente se comove quando um homem fala abertamente de sentimentos, de arrependimento, e pode até achar muito corajoso esse lance de assumir o erro em carta aberta. Infelizmente, nenhuma mulher teria a mesma oportunidade. Se estivéssemos falando de uma gestante, então, a vida dela e a da criança estariam condenadas ao assédio eterno.

Trair não é, nem de longe, o maior mal que se pode fazer a um parceiro ou parceira. Muito pior do que ficar com alguém que te traiu é a violência, o abandono emocional, a negligência, a indiferença ou o abandono direto, aquele de quem sai para comprar cigarros num momento inoportuno e não volta nunca mais — muito em voga no Brasil, onde mais de metade dos lares já são chefiados por mulheres.

Outra modalidade de destrato que nunca sai de moda (e que não causa grandes polêmicas) é largar a mulher com o pepino emocional e prático de ter um filho. E é nesse ponto que aquilo que Neymar está chamando de "erro" poderia ser chamado, simplesmente, de covardia.

O pedido de desculpas do jogador foca no problema da exposição da mulher e do filho. Se a gente vivesse em uma sociedade decente, ninguém além dele se sentiria constrangido nessa história. O papelão de ser desleal com uma mulher vulnerabilizada por tudo o que envolve uma gravidez só tem um dono. E é justamente ele quem está sendo exaltado por tanta gente pela "hombridade" de dizer que a pessoa vitimizada, neste quiproquó, é a mulher dele. Uma lasanha de equívocos com muitas camadas.

A carta de Neymar diz, basicamente, que sua atitude fez a mulher passar vergonha. Ele não fala que sente vergonha em nenhum momento, e é difícil mesmo acreditar que sinta, principalmente porque 10 milhões de pessoas estão ali para dizer que não tem problema. Elas poderiam dizer muitas coisas, até de forma privada — que é o ideal, sempre — e poderiam inclusive ignorar a publicação do parça.

Mas não. Um tanto de gente, anônima e famosa, foi ali endossar uma atitude que tem mais cheiro, focinho e formato de gerenciamento de crise do que de arrependimento sincero. Uma carta aberta não deixa de ser um convite para a (geralmente cruel) opinião alheia e, nesse sentido, uma forma de revitimizar as pessoas que o jogador alega querer blindar. Sem mencionar o massacre popular em cima da moça (solteira) com quem ele (comprometido) se envolveu.

A disparidade de tratamento moral sobre homens e mulheres não é novidade, mas ela é especialmente patente no universo dos boleiros. A quantidade de relatos de abusos nesse ambiente não é aleatória, assim como os elogios rasgados dos admiradores de Neymar, nesse cenário, também não são. Não é coincidência que Daniel Alves e Robinho tenham feito o que fizeram. O futebol é lindo, mas é também uma máquina de moer mulheres e de exaltar homens machistas incondicionalmente.

Aos que se comovem com a carta do menino Ney, cabe ter a mesma generosidade com as moças que, porventura, derrapam em situações semelhantes. Aos que atacam as adúlteras, seria pouco coerente manifestar tanto carinho para com Neymar.

Por aqui, vou me hidratar, comer direitinho, praticar atividade física e reciclar lixo regularmente: quero viver o bastante para ver uma mulher fazendo carta aberta sobre adultério ser parabenizada pela atitude. De preferência, pelos mesmos parças que estão dando a maior força ao Ney nesse momento de crise.