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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que justifica a ausência de tantos craques no velório de Pelé?

Velório de Pelé é realizado no gramado da Vila Belmiro - Ueslei Marcelino/Reuters
Velório de Pelé é realizado no gramado da Vila Belmiro Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters

Colunista do UOL

03/01/2023 13h04

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O matemático e meteorologista Edward Lorenz dizia que o bater de asas de uma borboleta no Brasil poderia ocasionar um tornado no Texas.

Em setembro de 1956, em Santo André (SP), uma borboleta bateu asas contra o time da cidade. Tinha só 15 anos e acabava de estrear pelo time profissional do Santos. Menos de dois anos depois, ao marcar de cabeça o gol que selou a vitória na final da Copa do Mundo da Suécia, contra os donos da casa, aquele bater de asas virou um redemoinho e detonou um furacão não (só) no Texas, mas no mundo inteiro.

Nada mais seria igual no futebol desde então.

O Brasil, depois de Pelé, até voltaria a ganhar uma Copa. Duas, aliás.

Mas não seria absurdo imaginar que Romário e Ronaldo, craques de 1994 e 2002, talvez tivessem ouvido de seus pais, na infância, que era melhor fazer outra coisa da vida a não ser bater bola e projetar qualquer futuro em um esporte que levava a lugar nenhum.

Um esporte de fracassados.

Era o que os antigos poderiam dizer se Pelé não tivesse aberto uma chapelaria no estádio Rasunda, em Solna, e libertado um país inteiro da marca da derrota gravada como em pedra no coração dos brasileiros em 1950.

Não era preciso que um país testemunhasse Pelé em campo, ao vivo e in loco, para entender a revolução que estava em curso no país. Basta que uma pessoa tivesse testemunhado.

O futebol, como conhecemos hoje, é resultado de um país que se apaixonou pelo esporte. Havia um antes e um depois de Pelé. E não só em termos plásticos, estéticos, técnicos ou táticos. O futebol, sem ele, não teria a mesma visibilidade. Não moveria tanta paixão. Não teria o mesmo valor.

O futebol talvez não fosse sequer nosso esporte favorito hoje se não existisse Pelé.

Sim, o futebol já arrancava suspiros e juntava multidões antes dele. Mas foram as vitórias que o país conquistou com ele em campo que aglutinaram o que até então eram amores contrariados, disputados num país distante e esquecido num canto do mundo. Um país acostumado a ser caipora, o personagem de Machado de Assis que cai de costas e consegue quebrar o nariz.

Com Pelé passamos a ser disputados. Respeitados. Cobiçados. Invejados. Valorizados.

Aprendemos a ser petulantes, a encarar quem estivesse à frente porque ele mostrou, aos 17 anos, que era possível.

Aprendemos também que torcer era bom, mas vencer era ainda melhor.

Talvez ninguém se mobilizasse a deixar o que estava fazendo para ver futebol numa quarta-feira à tarde, ou num domingo à tarde, se lá atrás ele não tivesse viciado um país inteiro nesse esporte. Em vez disso estaríamos fadados à mais sorumbática das rotinas.

Talvez nem o futebol, o esporte mais popular do planeta, despertasse tanta atenção ou tivesse tanta importância e interesse uma hora dessas. Haveria tantos jornalistas especializados? Tantos atletas inspirados? Tantos profissionais da cobertura esportiva?

Desde sua morte, na quinta-feira (29), não faltaram relatos de quem só se tornou jogador, ou torcedor ou jornalista depois de ver Pelé em campo. Quem não é testemunha e fã do Rei do Futebol é filho de um. Ou neto. Ou bisneto.

Somos todos descendentes de algum apaixonado por futebol. Que só se apaixonou por futebol por causa de Pelé.

Desde 1977, quando Pelé se retirou dos campos, esses apaixonados e filhos de apaixonados se perguntam todo dia quem são os próximos sucessores da realeza em um país que passou a produzir talento em escala industrial.

Todos querem saber quantos craques mais sairão do país onde nasceu Pelé. O mundo passou a acompanhar com atenção e espanto o surgimento de atletas como Rivelino, Zico, Romário, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Neymar, Marta. Todos herdeiros de uma trilha aberta por um bater de borboleta lá atrás.

Por isso é estranho que alguns desses herdeiros, sobretudo os últimos campeões mundiais com a seleção, ou mesmo o último técnico dela, não tenham comparecido em peso, de joelhos, para se despedir do responsável direto e indireto por eles estarem onde estão.

Cada um deve ter sua razão para não comparecer.

Talvez tenham imaginado que, em tempos de comunicação virtual, um vídeo e uma postagem protocolar nas redes, sem choro ou interação física, bastam para registrar a reverência. Sinal dos tempos.

Talvez estejam ainda digerindo as críticas recebidas por Pelé quando ele era chamado a opinar sobre o futebol de seus sucessores. (Pelé deixou muitos herdeiros, alguns mal acostumados e sensíveis ao menor sinal de contrariedade).

Talvez simplesmente tivessem mais o que fazer.

A ausência dos herdeiros da linhagem mais nobre do esporte reinventado por Pelé é estranha.

Outro dia mesmo o Kaká se queixou de uma suposta falta de reconhecimento dos brasileiros com seus craques. A homenagem histórica feita por mais de 200 mil torcedores que se reuniram para ver Pelé cruzar o campo da Vila Belmiro pela última vez desmente o diagnóstico do ex-jogador.

Ao deixar de prestar condolências de corpo presente, Kaká e seus amigos se comportam como netos ricos que faltaram ao enterro do avô porque estavam ocupados demais para se despedir do responsável por fazer a família toda enriquecer.

Aposentar a camisa 10, mudar nome de estádio, rebatizar cidades, criar um mausoléu, espalhar estátuas, decretar feriado: não tem homenagem que dê conta da estatura de Pelé para o Brasil e o futebol. A presença no velório, para quem recebeu tanto do futebol graças a ele, não era só sinal de respeito e gratidão. Era o mínimo.