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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Crianças encontradas na Colômbia ajudam a resgatar esperança na humanidade

Cachorro Wilson desapareceu durante buscas das quatro crianças colombianas - Reprodução/Forças Militares da Colômbia
Cachorro Wilson desapareceu durante buscas das quatro crianças colombianas Imagem: Reprodução/Forças Militares da Colômbia

Colunista do UOL

14/06/2023 04h01

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"O Senhor das Moscas", de William Golding, é um marco da literatura mundial. Considerado uma espécie de paradigma para os futuros reality shows, o livro conta a história de um grupo de meninos que sobrevive a um acidente de avião e passa a perambular em uma ilha deserta em busca de resgate.

Naquele território inóspito eles dividem tarefas e criam hierarquias que transformam o exercício de sobrevivência na selva em uma disputa violenta por poder.

Era uma alegoria que invertia a noção rousseauniana segundo a qual o indivíduo nasce bom, mas a sociedade o corrompe. Lá, ao contrário, é a brutalidade e a selvageria que se impõem à medida que os destroços do pacto civilizatório ficam para trás.

Em seu livro "Humanidade — uma história otimista do homem", o historiador holandês Rutger Bregman contesta a distopia de Golding, que durante décadas ajudou a consolidar a ideia de que o indivíduo é ruim por natureza e essa é uma marca de nascença observável logo na juventude.

Bregman faz seu contraponto examinando a história de seis jovens náufragos que passaram quase um ano isolados em uma ilha do Pacífico nos anos 1960.

Lá, em vez da guerra de todos contra todos, o que se viu foi o triunfo da cooperação e da solidariedade entre os amigos.

O episódio serve para ilustrar um ponto-chave na obra do historiador: que a visão turva que temos da humanidade nos impede de concluir que a maioria das pessoas é, sim, muito decente e (desculpem os céticos) consideravelmente generosa. E que defender a bondade humana é tomar uma posição contra os poderes vigentes, já que, segundo o autor, para eles qualquer visão esperançosa da natureza humana é uma ameaça subversiva e sediciosa à ideia de que precisamos ser domados como feras.

Polêmico, eu sei.

Mas, desde a semana passada, Bregman ganhou algumas razões para lançar uma versão ampliada de sua obra com a história do resgate de quatro crianças sobreviventes de uma queda de avião na mata colombiana. Entre elas estava um bebê de 11 meses, que não ficou para trás quando o instinto de sobrevivência dos demais falou mais alto.

Durante 40 dias, Lesly Mucutuy, a irmã mais velha, de apenas 13 anos, carregou uma mochila com um toldo improvisado, toalhas e uma lanterna e orientou os pequenos a andarem sempre perto dos rios, onde poderiam encher uma única garrafinha de água.

Eles conseguiram armar uma pequena barraca com os materiais disponíveis e alguns pedaços de madeira. Lesly andava de mãos dadas com a irmã de 9 anos e o bebê no colo quando foi localizada por um indígena que ajudava nas buscas. Ela correu para abraçá-lo quando soube que seu pai e sua avó esperavam por eles.

Já no hospital, os sobreviventes tiveram força para desenhar seus momentos na selva. Nos traços é possível ver o cachorro Wilson, um pastor belga que colaborou nas buscas e depois desapareceu. Os desenhos, entregues junto com algumas flores aos líderes do resgate, podem ajudar agora a encontrar o animal.

O desfecho da história até aqui é, em si, um contraponto etnográfico ao imaginário ativado por William Golding em seu tratado sobre a gênese da maldade — à qual Nelson Rodrigues assinaria embaixo dizendo que o ser humano, e não só o mineiro, não é solidário nem no câncer nem no naufrágio.

O problema são as páginas anteriores e as seguintes. O acidente de avião que vitimou a mãe das crianças e o piloto aconteceu enquanto a família fugia de dissidentes do acordo de paz selado entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, uma chaga de violência que ainda assola os habitantes do país.

E, mal saíram da selva, os jovens adentraram em uma disputa familiar entre seu pai e a avó materna, que o acusa de violência contra os filhos (ele, por sua vez, acusa a ex-sogra de querer apenas dinheiro).

Em algum momento da vida adulta as crianças resgatadas poderão se lembrar dos tempos em que tudo o que possuíam, além dos parcos recursos e alimentos disponíveis, era a solidariedade para cuidar uns dos outros e sobreviver. O indivíduo, ao que parece, nasce bom e tende a se manter assim mesmo nos momentos de terror. O problema, como sempre, é quando o adulto, já corrompido, decide entrar na história.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL