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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Festa Junina raiz, Indiana Jones, Titãs: por que nostalgia não sai de moda?

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

29/06/2023 04h00

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Eu não tinha acompanhado ainda a discussão sobre São João Raiz x São João Nutella do último "Saia Justa", da GNT, quando decidi atravessar uma linha perigosa na festa junina do bairro, no último sábado (24), dia de São João.

Numa das barracas, me via espremido numa fila com outros homens de meia-idade à espera do elixir da curta vida que jorrava de uma bica de chope IPA. Havia algo de estranho naquele acrônimo de India Pale Ale, vendido numa barraca entre bandeirinhas de uma das mais tradicionais festas brasileiras — disputada, cabeça a cabeça, com o Carnaval.

A música ao fundo, uma baladinha que parecia tocar antes de uma cena mais picante da "Sexta Sexy", da TV Bandeirantes, aprofundava meu conflito. Não era culpa de ninguém, mas sim dos algoritmos do celular de quem gentilmente ofereceu sua caixa de som para (des)animar o evento. Não tinha nada na playlist que rezasse a São João e acendesse alguma fogueira no meu coração.

"O que é o São João Tradicional", me sussurrou alguém ao ouvido, sem que eu reconhecesse se a voz era de um anjo ou do demo. "Qual o Marco Temporal que a gente vai estabelecer para o São João? A morte do seu mundo não é a morte do mundo", eu ouvia, enquanto do outro lado alguém gritava entre estalos de bombinhas: "Amendoim cozido! Quero amendoim cozido! Isso aqui não é festa de São João, é retiro espiritual".

Mal me livrei do copo (e dos anjos/demônios) e corri para a barraca ao lado, onde um vizinho buscava com uma concha, num panelão de alumínio, a poção mágica que me levaria direto a algum canto da adolescência. O quentão, com seu cheiro de gengibre e canela, era a madeleine pronta para reconstituir minha busca por um tempo também perdido.

Fui assim arremessado não para outra festa de São João, mas para São Pedro, padroeiro da pequena chácara onde passei a infância e onde testemunhei, em 1994, a primeira ofensa à tradição cuidada durante anos por meus pais, tios e avós.

Era época de Copa do Mundo, dia de jogo do Brasil, e São Pedro, com sua chave para o céu e olhar sisudo à entrada da casa, talvez tenha ficado enciumado de dividir as atenções com Bebeto e Romário e as bandeiras do Brasil.

Vimos o jogo com ajuda de uma TV pequena — com antena e esponja de aço espetada na ponta para pegar melhor. Dos quitutes, só lembro das pipocas que devorávamos na frente do aparelho para desbaratinar a tensão após o gol de empate da Holanda. Mas aí o Branco, com uma patada de perna esquerda em cobrança de falta, fez o gol da vitória por 3 a 2 e nos levou a queimar, antes da novena, todo o arsenal de bombas e rojões comprado numa barraca móvel improvisada no caminho da zona rural.

Acho que aquela foi a última festa junina de minha infância. No ano seguinte, não queríamos saber nem de bombas nem de futebol, mas das quadrilhas. Não, ninguém entrou para o crime (não ainda). É que os pares formados para a dança tradicional já eram prévias dos pares que formaríamos, naquele mesmo ano, até o dia da formatura.

As memórias daquelas festas de três décadas atrás vieram como uma epifania. Bendito quentão, que não sei quando experimentei pela primeira vez — teria menos de 18 anos? Como os adultos deixaram? Fica aqui a deixa para a discussão sobre tradição e modinha, junto com o debate sobre como sobrevivemos manejando sozinhos, sem a supervisão dos adultos, os tracks, buscapés, bujões, peitos de véia (sic), terra-tremes e outras bombinhas que dinamitavam pisos, paredes e algum senso de responsabilidade da velha chácara.

Quando adormeci, naquela noite de São João (na verdade, São Pedro), havia alegria e rumor, vozes, cantigas e risos ao pé das fogueiras acesas, como no poema de Manuel Bandeira.

No meio da noite, quase 30 anos depois, despertei e não ouvi risos, mas as vozes pareciam assombradas com o ritmo das mudanças, e não só as que descaracterizam e/ou reorganizam as festas juninas tradicionais — elas também resultado do sincretismo e das transformações de seu tempo, como explica o mestre Michel Alcoforado.

Em meio aos festejos, vimos a mais tradicional livraria de São Paulo fechar as portas (e, com elas, nossas memórias). Bares famosos da cidade também estão por um fio. Devem dar lugar a mega empreendimentos, que acabam de receber sinal verde para avançar com a revisão do Plano Diretor.

Talvez seja por isso que discutimos tão a fundo as memórias de nossas festas populares: elas são um dos últimos redutos de encontro e coletividade que nos restou num mundo cada vez mais nichado e trancafiado entre algoritmos, cervejas caras e áreas gourmet.

As mudanças nos atravessam enquanto o Brasil fica menos jovem e os mais velhos se tornam o público-alvo de qualquer chaveiro que acione nossa nostalgia, do show da velha banda reunida aos filmes em cartaz. Neste ano, nada foi mais aguardado do que a volta dos Titãs e o novo filme do Indiana Jones. Tente esquecer em que ano estamos e o resultado pode ser confuso.

No cinema ou na barraca de quentão, a preservação ou o resgate da memória (ou a sua reivindicação) é um caminho com volta a um mundo que reconhecemos e que nos aciona a sensação de que, até pouco tempo, sabíamos alguma coisa do que estávamos fazendo e para onde íamos.

Os embates sobre tradição e modernidade ainda prometem esquentar muitas rodas de conversa e seus desdobramentos nas redes. Mas a nostalgia, nosso refúgio para momentos de incerteza, seguirá na moda.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL