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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não tem nada mais anticristão do que fala cheia de ódio de André Valadão

O pastor André Valadão - Reprodução/Instagram
O pastor André Valadão Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

05/07/2023 04h00

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Eu precisei atravessar a porta de vidro para entender como era estar do outro lado.

Na pequena cidade, onde visitava alguns parentes, acompanhava minha mãe em um passeio pelas lojas do calçadão, perto da praça e da Igreja Matriz, quando vi de longe os meninos saindo da escola.

Em turma, eles disparavam xingamentos em direção à loja, onde minha mãe era atendida por um rapaz um pouco mais velho que eu. Era ele o alvo do deboche.

"Bicha, bicha", gritavam os meninos, imitando vozes femininas.

Todo santo dia era daquele jeito, explicou o atendente.

Eu tinha que estar daquele lado para entender o que ele sentia, um misto de vergonha com medo do que aquelas crianças poderiam fazer quando crescessem.

Se morasse lá e estudasse naquela escola, provavelmente eu estaria naquela turma, sem jamais saber o que se passava do lado de dentro daquela loja.

Sim, até então eu só andava do lado de fora, fazendo coisas parecidas, se não piores, como se precisasse agir daquela forma para ter o respeito dos "caras" do colégio (leia-se não apanhar).

Não lembro quantos anos eu tinha. Quinze? Dezesseis?

Jamais me livrei de todo dos preconceitos aos quais fui mergulhado desde que nasci. Esses preconceitos emergem algumas vezes, e a vida adulta não me livrou deles. Principalmente quando digo a meu filho que ele precisa ser "homem" ao menor sinal de fraqueza.

Mas nunca me esqueci daquele episódio. Ele me mostrou como a homofobia machuca, mesmo quando parece apenas uma brincadeira, dessas que todo mundo faz para se provar homem.

Filho de catequista e criado na igreja, saí daquela loja sem qualquer dúvida sobre de que lado Cristo estaria se vivesse entre nós. Minha mãe também não tinha dúvida.

"Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei", diz o Evangelho de Mateus, capítulo 11, versículo 28.

Nunca deixei de rezar por aquele rapaz nem para todos os amigos que um dia precisaram sair fugidos do lugar de origem para escapar das pedradas de quem os julga como doentes ou pecadores.

Desde que me conheço por gente, não me lembro de nenhum momento em que ouvi, durante uma celebração, a palavra "ódio". Pelo contrário. Cresci ouvindo que Deus é amor.

E que nós, aqui embaixo, tínhamos o dever de amar. Pois o amor vem de Deus e tudo o que ama é nascido de Deus. "Aquele que não ama não conhece a Deus", diz a música, citando 1º João, 4. 8.

Por isso soam tão inacreditáveis as palavras de um líder religioso, durante um culto realizado em Orlando, nos EUA, insinuando que evangélicos deveriam matar pessoas LGBTQIA+.

O incitamento não é sequer velado. André Valadão, num raciocínio pedestre, afirma que uma "porta" se abriu quando o casamento entre pessoas de mesmo sexo passou a ser tolerado e normalizado pela sociedade. Essa porta, afirmou, fez com que agora homens e mulheres "desfilem nus com seus genitais" na frente de crianças nas paradas LGBTGIA+. (Uma cena, claro, que só existe na cabeça do pastor.)

"Essa porta foi aberta quando nós tratamos como normal aquilo que a Bíblia já condena", disse ele, antes de defender que era hora de "tomar as cordas de volta".

Nas palavras de Valadão, Deus tem um trato com a humanidade e não pode "resetar" o que criou, como prometeu em sua aliança com o povo, cujo símbolo é um arco-íris.

Mas Valadão garante que Deus, se pudesse, "matava e começava tudo de novo". Mas, como não pode, a missão está agora com vocês — no caso, os fiéis. "Vamos pra cima. Eu e minha casa serviremos ao Senhor", disse ele, como se estivesse diante de um Exército.

A incitação é clara e virou objeto de análise do Ministério Público Federal e também de repúdio de deputados e pessoas famosas.

Como covarde que é, Valadão disse que sua declaração foi tirada de contexto e culpou a grande mídia pela repercussão de sua fala.

"Matar", no caso, não se referia ao aniquilamento de pessoas, garantiu o pastor. Ele queria dizer apenas que "cabe a nós levar o ser humano ao princípio daquela que é a vontade de Deus" — no caso, matar quem nos desperta horror, podemos ouvir mais de uma vez, só para ter certeza.

As críticas e desejos manifestos por punição é tudo o que Valadão precisa para se colocar no lugar de "mártir" depois defender uma violência.

Que ninguém se engane: não existe fala mais anticristã do que a de um pastor ao se referir a um grupo social já suficientemente apedrejado pelo falso moralismo que o próprio Cristo combateu.

Foi ele, afinal, quem desencorajou os justiceiros de seu tempo a jogarem pedras contra uma mulher considerada "pecadora".

Na Bíblia, uma das únicas passagens em que Jesus demonstra fúria é quando vê o que faziam os vendilhões do templo. No mais, é claro em sua mensagem de que devemos amar uns aos outros, sem qualquer asterisco com distinções em letras pequenas no pé da página sobre quem quer que seja.

Em seu perfil no Instagram, o pastor e teólogo Hermes Carvalho Fernandes foi cirúrgico ao dizer que falas como a de Valadão incentivam, na prática, pais a expulsarem filhos gays de casa e amigos a cortarem relações. "Para Jesus, isso também é matar".

Fernandes chama de "mensageiros de Satanás" os que "continuam disseminando ódio contra uma minoria vulnerável, colocando pais contra filhos, e filhos contra pais, instigando a violência, o preconceito e a discriminação".

"Jesus passa longe dessa nojeira", concluiu.

Como disse, também em suas redes, o amigo e também pastor Ranieri Costa, colaborador do UOL, uma lição do episódio é que não devemos dar ouvidos a quem prega ódio usando o nome de Deus. "Não há uma pessoa LGTBQIAPN+ que não seja profundamente amada por Deus", escreveu.

É uma lição (que deveria ser) básica, mas que precisa ser repetida toda vez que numerosos falsos profetas surgirem, enganarem e desencaminharem tanta gente neste mundo de perseguições, multiplicando a maldade e levando o amor a esfriar, como descrito em Mateus, capítulo 24.

Não conheço Valadão nem sua índole. Mas não consigo ver sua performance e não imaginar que ela é o exato oposto de tudo o que me foi ensinado, inclusive dentro de casa, sobre Deus e sobre o amor.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL