Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Chacinas ensinam que segurança x direitos humanos é uma falsa dicotomia
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Caetano Veloso e Gilberto Gil cantavam em 1993 que era possível ouvir o sorriso sorridente de São Paulo diante da chacina. Um ano antes, a Polícia Militar do governador Luiz Antônio Fleury Filho havia invadido a Casa de Detenção de São Paulo, no Carandiru, para botar fim a uma rebelião deixando por lá 111 mortos.
O massacre motivou a formação do Primeiro Comando da Capital, num dos muitos sinais de que ninguém ficou mais seguro desde então, nem mesmo o responsável pela ação. Com um número de legenda que fazia referência ao número de mortos, o coronel Ubiratan Guimarães foi eleito deputado estadual de São Paulo em 2002, um ano depois de ser condenado por 102 das 111 mortes. Ele seria assassinado com um tiro à queima-roupa em seu apartamento, em 2006, em um crime até hoje mal explicado.
Quem acompanhou o noticiário de lá para cá já deve ter percebido que o Carandiru não foi a primeira nem a última chacina no estado. Não, Tarcísio de Freitas não inaugurou a era dos jogos vorazes quando se disse "extremamente satisfeito" com a matança promovida por policiais, parte deles curiosamente sem câmeras na farda, no Guarujá, em resposta ao assassinato de um soldado.
A declaração, interpretada com um aceno ao grosso do eleitorado, ecoava a cartilha de seu padrinho político, Jair Bolsonaro (PL), para quem direitos humanos eram o "esterco da vagabundagem". Alguém poderia lembrar que o modelo de trabalhador dedicado é suspeito de andar com matadores e enriquecer a família embolsando joias e salários de funcionários, mas essa (não) é outra história.
No rastro de matanças registradas nas últimas semanas em São Paulo, na Bahia e no Rio, onde a pena capital é aplicada na prática até contra meninos de 13 anos deitados, surgem as vozes de sempre dizendo que nessas horas é inútil clamar por direitos humanos. Trata-se de um conceito abstrato demais para quem quer apenas andar em segurança pelas ruas.
Que o digam os moradores de territórios criminalizados em ações do tipo, que mal colocam os pés fora de casa para trabalhar e escutam as armas do Estado engatilhando em suas costas.
O suposto embate entre segurança e um direito "abstrato" (como não ser executado ou ter o corpo trancafiado sem julgamento) é uma falsa dicotomia. Ela é assombrada em 2023 pelo aparente sucesso da política de segurança zero promovida pelo presidente de El Salvador, Nayib Bukele, que decidiu resolver a questão da criminalidade em seu país transformando-o em uma grande Itaguaí, cenário do famoso conto de Machado de Assis em que apenas o alienista da cidade fica de fora das grades de um manicômio. Lá, como cá, de perto ninguém é normal ou inocente; não a ponto de passar longe do medo de ser encarcerado.
Bukele ainda não se converteu (ainda) em Simão Bacamarte, mas já ostenta impressionantes 70 mil presos sob sua custódia - quase 1% da população.
Quem reclama da voracidade encarceradora daquele país recebe como resposta uma patada em forma de estatística: lá, ao menos, a criminalidade diminuiu.
Há muito o que se questionar sobre o "jogo de resultados" da política de segurança de um país que já faz escola entre candidatos linha-dura pela América Latina. Alguém de fora poderia questionar se lá não se trocou um crime por outro: saem de cena pequenos furtos e entram os raptos patrocinados pelo Estado. Ou existe outro nome quando alguém é tirado de circulação sem acusação formal e, sem julgamento, passa os próximos anos trancado em cativeiro?
Por aqui, todo mundo sabe quem são as vítimas da violência estatal: homens, negros, com baixa escolaridade. O que, para uns é segurança, para outros é medo de sair de casa e ser "forjado".
Ninguém dos grupos de vítimas preferenciais está andando mais tranquilo quando volta do trabalho ou da escola em dia de chacina num país onde tirá-los das ruas é sinônimo de "limpeza".
A segurança em troca de direitos é exatamente o que vendem grupos milicianos em áreas periféricas. Eles assumem territórios prometendo combater o tráfico num dia e no outro assumem a biqueira. Numa semana cobram um valor fixo para sumir com o "nóia" que perambulava pelos comércios locais. No outro, cobram o dobro para sumir com o vizinho que não abaixou o som. Ou com a testemunha de alguma investigação que os complique.
Quem associa direitos humanos a esterco são os mesmos que veem na execução e na tortura (nas ruas ou presídios) métodos eficientes de pacificação.
No livro "A ditadura escancarada", Elio Gaspari lembra o que aconteceu na Argélia em 1957, quando o Exército francês se sobrepôs ao poder civil com o objetivo de varrer na força a ameaça terrorista no país. Dos 1.800 argelinos detidos, ao menos 200 desapareceram (há quem diga que foram mais de 4 mil).
A pacificação durou pouco. Os responsáveis pela ação se empoderaram, transformaram a violência em método, tentaram um golpe de Estado, foram enquadrados e se abrigam na clandestinidade, aliando-se a um grupo que planejava atentados contra autoridades e em um só dia explodiu 120 bombas em Argel.
Gaspari lembra que aventuras autoritárias terminam como começam: em terrorismo.
Até lá, são chamados de outros nomes sob a sombra de falsas dicotomias.
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