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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fé na própria esperteza leva Silvinei, Cid e Torres para o mesmo destino

Bolsonaro posa ao lado de Silvinei Vasques e Anderson Torres - Twitter
Bolsonaro posa ao lado de Silvinei Vasques e Anderson Torres Imagem: Twitter

Colunista do UOL

09/08/2023 12h08

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Email inválido

Uma criança, quando apronta, tem um modo particular de fugir da punição.

O filho de um amigo, logo que aprendeu a andar, certa vez correu para o quarto no intuito de se esconder após alguma traquinagem. Fez isso colocando a cabeça embaixo da cama. Só se esqueceu de esconder também as pernas, que ficaram à vista para quem o procurasse.

É uma esperteza infantil e genuína. "Se eu não me vejo, ninguém mais me vê", ele deve ter pensado.

O reforço positivo é calibrado por adultos que entram na brincadeira e fingem ter sido enganados. E quem resiste? A vida, pensamos, um dia vai ensinar a aprontar sem deixar rastros.

Nem sempre.

Nos últimos dias, chamou atenção a exposição de pernas e ombros de auxiliares de Jair Bolsonaro (PL), que tentaram primeiro dar um golpe de Estado e, depois, esconder a traquinagem em e-mails, gavetas ou mesmo exposição em redes sociais. O esforço foi tão efetivo quanto o de uma criança escondida pela metade.

Preso nesta quarta-feira (9), o ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques havia prometido, em 20 de junho, contar à CPI do 8/1 toda a verdade sobre "essas fake news" que o colocavam no centro de uma trama para impedir a circulação de eleitores nos estados do Nordeste onde Lula (PT) obteve mais votos no primeiro turno.

Os bloqueios das estradas aconteceram após uma viagem de Anderson Torres, então ministro da Justiça, à Bahia, estado onde o petista recebeu quase 70% dos votos nos dois turnos. E foram mais intensos naquela região do que em qualquer outra onde Bolsonaro, a quem Vasques havia pedido voto em uma rede social, despontava como favorito.

O depoimento de Silvinei não convenceu nem a CPI nem a Polícia Federal, que o levou em cana menos de dois meses depois.

Sua prisão tende a complicar ainda mais a vida do ex-chefe Anderson Torres, que já não sabe o que dizer para convencer a plateia de que viajou para a área dos bloqueios com o objetivo apenas de acompanhar obras da superintendência da PF.

A justificativa é tão verossímil quanto dizer que ele guardava uma aberração jurídica em forma de minuta golpista, como se fosse papel de bala, por descuido, antes do devido descarte, em uma gaveta de casa. Ou que viajou às vésperas da invasão às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro, porque não tinha informação suficiente sobre os planos de "tomadas do poder", assim descritos em um informe recebido em suas mãos pouco antes de encerrar o expediente na antevéspera, já como secretário de Segurança do Distrito Federal, e voar em direção a Miami, onde se encontrava Bolsonaro. Ou que só não entregou seu celular às autoridades, ao ser detido na volta, porque estava tão atordoado que esqueceu o aparelho nos EUA.

Pois é exatamente essa conversa que ele tenta emplacar há meses, deixando todos os membros do corpo expostos, desde que entrou na mira da PF que um dia comandou.

O rapaz do meme, preso com 17 mil maços de cigarro no automóvel jurando que era tudo para consumo próprio ("eu pito muito"), soou mais convincente em seu flagrante. Uma criança escondida pela metade debaixo da cama, também.

Silvinei Vasques e Anderson Torres, hoje monitorado por tornozeleira eletrônica, serviram como peças de uma máquina golpista acionada antes e depois da eleição. Os dois repetem as histórias de como foram parar na cena do crime contando que o público tenha a mesma capacidade cognitiva e executiva que esbanjaram em suas passagens pelo Planalto. Se tem gente que financia, via Pix, até lotérica da família Bolsonaro acreditando que estão apenas ajudando um coitado perseguido a pagar o almoço, tudo pode acontecer, eles devem pensar.

Existe um nome para a crença na própria inteligência: efeito Dunning-Kruger. É a mesma autoilusão que levou um sujeito a esfregar limão no rosto para ficar invisível durante um assalto nos EUA e descobriu depois, já na prisão, que o plano falhou.

Essa esperteza rudimentar parece ser uma marca dos auxiliares diretos do ex-presidente. Deles ninguém representa melhor o espírito da turma do que o chefe de seus ex-ajudantes de ordem, que tentaram apagar mais de 17 mil e-mails funcionais de suas caixas de entrada e esqueceram de deletá-los da lixeira. As revelações agora vêm a público sem ajuda de qualquer hacker.

Um desses e-mails mostrou que Mauro Cid, braço-direito do então presidente, tentou bater rolo com um Rolex que não teve nem o cuidado de não descrever como um presente ganho em viagem oficial. O negociante está preso e vestiu farda para prestar depoimento à CPI, em uma sessão em que disse tudo sem dizer nada.

O histórico da turma leva a crer que se eles estivessem à frente do desembarque da Normandia, considerado o "Dia D" para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, o mundo falaria alemão uma hora dessas.

Mas o mesmo mundo está cheio de exemplos do que acontece quando gente estúpida e armada ganha poder e tenta mudar os rumos da história — ou da vontade popular. O resultado vai além do meme.

Nem toda bomba explode no colo antes de ser detonada por criminosos como os do Riocentro, às vésperas da reabertura democrática.

Conforme revelou o colunista Guilherme Amado, do portal Metrópoles, entre as mensagens que Mauro Cid esqueceu de apagar em sua lixeira estão conversas com militares plantados por Bolsonaro no Gabinete de Segurança Institucional. As conversas revelam que ele era informado sobre os planos de segurança do já presidente Lula em viagens oficiais. Qual era o interesse do ajudante-de-golpes nesse tipo de informação? E dos traidores que enviaram informação confidencial a quem flertou durante meses com gente disposta a invadir prédio público, explodir aeroporto e tomar o poder à força?

São cenas do próximo capítulo.

Uma coisa até aqui é certa: apesar do raciocínio pedestre, ninguém ali é mais criança. São marmanjos que não dão um passo sem ouvir a voz de comando. Um manda e outro obedece, lembra?

Largados na estrada, perigam assumir a culpa sozinhos. Falta a outra metade desse corpo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL