Topo

Michel Alcoforado

Por que políticos brasileiros gostam tanto de mentir a formação?

AMP Mentira 1 - Flávio Florido/UOL
AMP Mentira 1 Imagem: Flávio Florido/UOL

Colunista do UOL

11/07/2020 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O ritmo dos eventos no Brasil desafia a capacidade reflexiva deste colunista. Não raro, num intervalo entre uma coluna e outra, sou obrigado a jogar tudo fora para me dedicar a um novo assunto — mais atual, mais importante e mais interessante para os leitores. É duro pensar num país em que o novo fica velho rápido. Algumas notícias ficam frias para os telejornais, mas continuam quentes ao entendimento da dinâmica cultural do país. Sorte nossa!

Semanas atrás, Carlos Alberto Decotelli foi escolhido para o Ministério da Educação, depois do fiasco dos seus antecessores. A imprensa festejou o novo nome. Os telejornais repetiam cada linha do seu currículo. O novo ocupante é economista, mestre pela Fundação Getúlio Vargas, doutor pela Universidade de Rosário e pós-doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Em muito tempo, era a primeira vez que um "técnico" ocupava a cadeira de ministro — em 2019, ele foi indicado à presidência do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). A alegria demorou menos de 24 horas.

A universidade argentina logo veio a público dizer que o ministro não tinha obtido o título de doutor. Fez as disciplinas obrigatórias para obtê-lo, mas não conseguiu ter a tese aprovada. Por consequência, não é o que dizia ser. Os acadêmicos alemães também se apressaram em desmentir sua formação: lembraram que o professor brasileiro tinha visitado a unidade de ensino apenas para um curso de curta duração. Nada próximo do estágio de pós-doutoramento oferecido. A lógica se impôs: se não era doutor, como poderia ser pós-doutor?

Por fim, com a ajuda de softwares de comparação, os jornais descobriram que sua dissertação de mestrado contava com mais de 73% de páginas copiadas de outros autores. De pós-doutor, Decotelli terminou a semana como quase mestre. Mas não podemos culpá-lo. Mentir no currículo não é a nova moda em Brasília.

Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, se dizia mestre pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Os norte-americanos negam. Damares Alves, responsável pela pasta dos Direitos Humanos e da Família, se dizia mestre em educação. Fraude. O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, carimbou no próprio currículo um "doutorado sanduíche" pela Universidade de Harvard, com orientador e tudo. Nunca esteve por lá. A ex-presidente Dilma Rousseff se dizia doutora em Economia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Jamais apresentou a tese e foi obrigada a rever o currículo.

As inconsistências no currículo de tantos políticos não podem ser tratadas como um evento casual ou corriqueiro. Analisar tais corruptelas como tropeços é um erro. No Brasil, essa é a regra.

Há um padrão nas mentiras dos altos escalões da República. Em geral, figuras de fora do sistema (outsiders), em busca de um trânsito social azeitado, inventam títulos para marcar posição, serem ouvidos ou levados em consideração. Com a pecha de doutor, eles reforçam a própria diferença no debate público, ostentam saber e ganham uma visibilidade não antes esperada.

Dado o padrão, é possível afirmar que estamos diante de um fenômeno social. Afinal, da mesma forma que a construção da verdade é cultural e varia de uma sociedade à outra, a invenção de uma mentira também é. Não mentimos pelos mesmos motivos, do mesmo jeito. Um deslize intencional não cola em qualquer lugar. É preciso entender o que está em jogo para saber mentir. O jeito brasileiro de mentir revela mais do que o caráter dos mentirosos.

Hannah Arendt, filósofa alemã, escreveu sobre os diferentes modos de mentir ao longo da História. Segundo a autora, na política pré-moderna, mentia-se para esconder algo, suprimir uma versão ou não manipular a avaliação do grupo sobre um fato. Hoje, na política, mente-se para criar uma realidade. Fazer do mundo imaginado, real.

No Brasil, o tropeço busca criar uma bagagem de conhecimento que o mentiroso não tem e se concentra sobre os títulos de saber, nunca sobre o campo do trabalho. Os políticos se esforçam para inflar as experiências acadêmicas, os diplomas que não têm, mas não acrescentam uma só vírgula às experiências profissionais. Aqui, o saber é um valor mais importante que o trabalho. O país se revela através das suas mentiras.

Em minha pesquisa de doutorado (com tese defendida e aprovada!), estudei as elites brasileiras. Apesar de muitos entrevistados terem anos de estudo, viagens, cursos no exterior, visitas aos museus mais importantes do mundo, obras de artistas consagrados em casa, o conhecimento acumulado não tinha o mesmo papel do que em outros contextos culturais. Ao contrário da sociedade francesa, as elites locais ostentam conhecimento tal como se isso fosse um objeto, uma coisa.

Lembro bem de uma entrevista que fiz na casa de um dos homens mais ricos do Brasil. Empreendedor, fez crescer o patrimônio herdado da família. Na sala de jantar tinha um quadro do artista inglês Damien Hirst. Quando saiu da sala, sua mulher revelou a artimanha, aos sussurros:

- Ele gastou uma fortuna nesse quadro. É por causa dos negócios. Nós damos muitos jantares aqui em casa para investidores e potenciais sócios. Quando chegam aqui, as pessoas olham e veem que gastamos isso tudo num quadro. "Hum..." Já pensam. "Estão bem de vida! É bom ficar perto!"

Na França, as elites políticas e econômicas se valem do conhecimento adquirido nas escolas, na família e na própria trajetória como um caminho para marcar a forma única como pensam, como veem o mundo. No Brasil, as elites ostentam o conhecimento, não como um rito penoso na autotransformação, mas sim como uma medalha, um símbolo de sucesso, um marcador, passível de ser comprado, se as condições financeiras do indivíduo lhe permitirem.

Não é à toa ser comum ouvir muitos pais brasileiros dizerem aos filhos que, sem ter propriedades para deixá-los como herança, lhes deixarão um único bem que ninguém lhes tirará: os estudos. Como se formação fosse algo passado através de gerações, assim como carros, casas e joias. Da mesma maneira, só por aqui, médicos e advogados expõem seus diplomas na parede como se fossem certificados de propriedade, escrituras ou registros, do conhecimento adquirido. Ou, ainda, é corriqueiro classificarmos escolas e universidades de baixa qualidade como vendedoras de diplomas, como se fossem concessionárias de carros usados ou imobiliárias.

A sanha por transformar conhecimento em papel é tamanha que causa desconforto quando pesquisadores brasileiros são convidados para congressos internacionais. Entre todas as nacionalidades, só os brasileiros pedem aos organizadores provas físicas da presença. Quando não conseguem uma declaração, se apegam ao folheto, a uma foto, a qualquer encarte em que constem seus nomes. Eles precisam transformar presença em prova. Para si e para os outros. Conhecimento precisa virar coisa para valer.

O fato de o conhecimento virar coisa tem duas facetas. De um lado, permite que um canudo debaixo do braço garanta inserção no mercado de trabalho e ascensão social. Aqui, um curso universitário no currículo aumenta em mais de 156% o salário dos diplomados — 3 vezes mais do que a média dos países-membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Eles catapultam os indivíduos para territórios nunca antes imaginados. Eles dão acesso e permitem que outsiders sejam aceitos em círculos proibidos. Por outro lado, assim como as coisas, eles podem ser falsificados, inventados e forjados e, até ser descobertos, funcionam como se fossem reais.

Num país onde educação ainda é um luxo para poucos e o conhecimento é um bem, ou inventa-se para ser incluído, ou ostenta-se o que se tem. Nesse cenário, não há saída. É só esperar o próximo caso de fraude. Questão de tempo.