Espanhol intermediário, Excel avançado: por que mentimos no currículo?
Na última semana, o terceiro ministro da educação do governo Bolsonaro, Carlos Alberto Decotelli da Silva, durou apenas cinco dias no cargo. Não chegou nem a ser nomeado de fato. Em poucos dias, foi pego na mentira no currículo: disse que tinha doutorado, mas não tinha. Consequentemente, não tinha também o título de pós doutorado que afirmava ter feito na Alemanha. Decotelli foi o quinto ministro a ter seu currículo contestado nesta gestão.
Infelizmente, a lorota no CV é mais comum do que se imagina. Segundo um levantamento da consultoria DNA Outplacement, 75% conta uma mentirinha no currículo — seja o nível de fluência em alguma língua (o famoso "espanhol intermediário"), o salário anterior ou algum título que não obteve. Sempre dizem que mentira tem perna curta, então a pergunta que fica é: por que as pessoas mentem?
Há toda uma teoria filosófica e uma argumentação psicológica sobre o por quê mentimos no dia a dia, mas o floreio do currículo tem uma razão mais clara: conseguir um emprego, mesmo que seja necessário contar uma mentirinha. "É uma forma de proteção, para evitar a ansiedade, o medo e também como uma maneira de obter benefícios", diz Tânia Barbieri, professora de psicologia do trabalho da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). "As pessoas tentam dar um jeitinho ou por temor de não conseguir uma vaga ou por necessidade."
O caso da publicitária Carolina Santos, 26, misturou os dois fatores. Depois de mandar currículo para várias empresas de São Paulo e ser recusada por morar em Porto Alegre (RS), decidiu mentir. "Eu estava tentando me mudar fazia tempo, só que nunca dava certo. Já tinha feito 30 entrevistas em um ano e ninguém me chamava, porque teria que esperar a mudança", conta.
"Então arrisquei. Me perguntaram se eu poderia ir até a empresa fazer a entrevista numa sexta-feira e eu disse que sim, comprei passagem no mesmo dia e fui. Podia ter dado tudo errado, mas quiseram me contratar. Aí falei a verdade, que precisaria de alguns dias para me mudar, e deu certo", lembra a publicitária.
A produtora audiovisual Isabela Nader, 32, também arriscou algumas mentiras no CV por uma oportunidade. Recém formada e recém chegada na Espanha aos 24 anos, sem visto de trabalho, ela precisava conseguir um trabalho. Depois de tentar vaga em bares e restaurantes, um amigo se ofereceu para ajudar a montar um currículo atraente: incluiu experiências que ela não tinha em lojas de grandes redes e bares que já não existiam mais. "Deu certo em um bar que era uma bagunça. Eu tentava fazer tudo certinho, mas ninguém prestava atenção. Minha função era fazer drinks na madrugada", conta.
Com o tempo, Nader conseguiu experiência e documentos na Espanha que permitiram com que ela trabalhasse em lugares melhores — e até mesmo em sua área. "Depois, eu comecei a conhecer pessoas e arrumar outros empregos melhores, fiz um currículo de verdade. A cada lugar que eu trabalhava de verdade apagava um que era de mentira do primeiro CV", diz. "Peço até desculpa a quem pediu vodca com limão e eu dei vodca com morango", brinca. De volta ao Brasil e com ampla experiência, não precisou mais mentir no currículo.
Mas, segundo Paulo Sardinha, presidente da ABRH (Associação Brasileira de Recursos Humanos), a falta de experiências pode abrir espaço para o candidato mostrar suas habilidades no currículo. "A gente não pode achar que é o currículo que vai arranjar emprego para a pessoa. Esse é um dos meios. Se eu não tenho experiência, vou escrever o que eu tenho: aspirações, qualidades, e posso trabalhar em cima de indicações", afirma. "Você coloca quem você é para que te conheçam como pessoa — e não pela experiência que não tem", completa.
A falta de autoconhecimento também pode fazer as pessoas inflarem o currículo. Não saber muito bem quem você é e do que você é capaz te faz inventar coisas que você não é (e habilidades que você gostaria de ter, mas não tem). "Existe o estereótipo de que CV é como uma ficha que você vai preenchendo. Dependendo da situação de desemprego, as pessoas preenchem um formulário com qualquer coisa", observa Isabela Melnechuky Cavalcanti de Albuquerque, coordenadora do PUC Carreiras e gerente de atendimento na PUCPR, pesquisadora associada do Instituto de Copenhagen de Estudos Futuros. "Quando você pega um padrão de currículo, às vezes não consegue se encaixar no que tem ali. Falamos sempre na universidade, para pessoas que nunca trabalharam, que elas podem destacar experiências de vida e habilidades que não necessariamente sejam de trabalho."
No geral, diz a especialista, colocamos menos no currículo sobre quem somos e mais sobre o que já fizemos — às vezes experiências técnicas que nem temos. "Uma pessoa não é só os cursos e diplomas que ela tem", afirma. "E o currículo não precisa ser o mesmo para todas as vagas. Tem que considerar qual o perfil que aquela vaga exige. Cada processo seletivo é diferente."
Para Barbieri, o objetivo de quem floreia demais o currículo é impressionar o outro. A mentira, diz a psicóloga, tem muita relação com a autoestima e a necessidade de aprovação do outro para se sentir melhor. Mentir no currículo pode ser meio caminho andado para ser chamado para uma entrevista, por exemplo, mas é ingênuo achar que sempre vai dar certo. "Isso é inconsequente, porque certas habilidades serão cobradas no dia a dia do trabalho e a pessoa não vai dar conta. Além disso, títulos acadêmicos podem ser cobrados na hora contratação. Você pode ter que apresentar uma prova", diz.
As mentirinhas no CV podem até parecer inocentes, mas elas têm consequências — como no caso de Decotelli, que nem chegou a tomar posse do cargo. Pegou mal. "Mesmo que seja por desespero ou ansiedade e não por má-fé, a confiança se quebra quando a mentira é descoberta", diz Sardinha. "O seu currículo tem seu nome, então, preserve-o. Não é uma instituição abstrata, não é só uma folha de papel", alerta.
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