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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No país de Dercy Gonçalves, deboche tem mais eficácia que o drama

Dercy Gonçalves durante o 16º Prêmio Austregésilo de Athayde, na ABL do Rio, em 2004 - Joao Cordeiro Jr/Folha Imagem
Dercy Gonçalves durante o 16º Prêmio Austregésilo de Athayde, na ABL do Rio, em 2004 Imagem: Joao Cordeiro Jr/Folha Imagem

Colunista do TAB

25/04/2021 05h01

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Carlos Lacerda não tinha dúvida de que fazia a coisa certa quando recebeu uma visita preocupada do seu irmão no cubículo que lhe servia de casa, em um quartel do Rio de Janeiro, em dezembro de 1968. Preso por determinações do Ato Institucional nº 5, sem chances de ter julgamento justo, o ex-governador resolveu apelar: começou uma greve de fome. Maurício Lacerda, tenso com a decisão, tentou convencê-lo a interromper o autoflagelo. Foi quando, em poucas palavras, resumiu o momento e a política brasileira de lá pra cá:

- Carlos, meu irmão, não se meta a fazer "Hamlet". Não há espaço para fazer política como Shakespeare por aqui. O Brasil é o país da Dercy Gonçalves.

Àquela altura, Dercy Gonçalves tinha uma carreira de sucesso como atriz do teatro de revista e se aventurava como apresentadora no "Dercy de Verdade", um programa com gincanas, shows musicais e entrevistas com personagens bizarros que fisgavam a audiência como a história do homem com dois pâncreas. A depender do dia, ainda sobrava espaço para a artista interpretar personagens cômicos e debochados sobre o cenário nacional.

A artista levou para o programa algo que era a sua marca antes de chegar às telas: gritava para todo lado impropérios de envergonhar a família tradicional brasileira que, diante do desconforto, cada vez mais seguia vidrada nas loucuras ditas pela atriz. Hábil, ela inventou um personagem capaz de lhe incluir, de algum modo, no jet set brasileiro. Sem isso, certamente, enfrentaria mais dificuldades para ser ouvida.

Trago aqui esse exemplo porque acredito que ele nos ajuda a compreender o crescimento da direita no Brasil e o jeito torpe com que eles pensam e fazem a política. Nos últimos anos, muitos cientistas sociais defenderam que a expansão da extrema-direita fez com que o ódio atravessasse os desejos, os sonhos, a criatividade e a potência da sociedade brasileira. Todos, de algum modo, precisam encontrar alguém para odiar para existir. Tempos bicudos.

Em 2018, a socióloga Ester Solano organizou um livro em que, junto de outros pesquisadores, defendia que o ódio (e suas variações como racismo e fascismo, entre outro ismos) se tornou estratégia básica de ação da direita mundo afora. Os exemplos estão por toda parte.

No Brasil, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro criou-se uma rede de apoio financeiro (com dinheiro público, é claro!) a blogs e perfis de redes sociais, para que espalhassem desinformação e ataques a reputação de jornalistas, políticos, artistas e veículos de imprensa críticos ao governo. O grupo se aproveita da facilidade com que caímos em qualquer besteirol e no alto engajamento que postagens de ódio geram nas redes sociais para impor um novo jeito de fazer política.

Na visão dos pesquisadores Ana Kiffer e Gabriel Giorgi, autores de "Ódios políticos e política do ódio: Lutas, Gestos e Escritas do Presente", "o ódio marca uma ruptura de certos pactos, protocolos e formas de relações prévias. Mas também abre novos territórios coletivos, novos lugares de fala, novas formas de ocupação do público".

Faz sentido? Si, pero no mucho.

Se o ódio é um sentimento capaz de romper o tecido social, quando este se mistura com o deboche abre pontes para o diálogo nunca antes imaginadas. Gente que jamais seria ouvida ganha os holofotes, os microfones e uma plateia ansiosa por ouvir a próxima pataquada.

Desse modo, é possível dizer que foi sobre o deboche, não só sobre o ódio, que a direita brasileira ganhou cenário no espaço nacional.

O presidente Jair Bolsonaro, junto a membros do governo, assistem de Brasília ao pronunciamento do presidente norte-americano Joe Biden durante a Cúpula do Clima - Marcos Correa/Brazilian Presidency (AFP) - Marcos Correa/Brazilian Presidency (AFP)
O presidente Jair Bolsonaro, junto a membros do governo, assistem de Brasília ao pronunciamento do presidente norte-americano Joe Biden durante a Cúpula do Clima
Imagem: Marcos Correa/Brazilian Presidency (AFP)

Foi sob tal toada que os movimentos conservadores ganharam espaço desde o impeachment de Dilma Rousseff. Não por acaso o símbolo das manifestações contra o governo eram o Pixuleco do ex-presidente Lula, o pato da Fiesp, os adesivos misóginos contra Dilma ou até mesmo toda a estratégia política de afirmação de movimentos como MBL, Vem pra Rua e outros. Há nessas manifestações a onipresença de símbolos de ódio contra os adversários políticos misturados a muito humor. Isso é capaz de fazer até os oponentes mais sisudos prestarem atenção.

O mesmo processo se repete quando olhamos para a trajetória política de Jair Bolsonaro. O político saiu da invisibilidade do baixo clero da Câmara até o Palácio do Planalto apostando pesado no mix de Dercy. Quando disse que a ditadura militar devia ter matado mais uns 30 mil, uniu ódio e deboche. Quando sugeriu o fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mostrou sua ira, mas arrancou sorrisos de canto de boca pela audácia.

Quando homenageou Brilhante Ustra, o famoso torturador, no voto pelo impeachment de uma ex-militante contra a ditadura militar, nos faz sentir nojo misturado à surpresa típica dos shows de humor. Ou ainda, quando ri dos mais de 300 mil mortos, nos pergunta se ele é coveiro e aconselha que a tomemos cloroquina ou tubaína, de acordo com o nosso posicionamento político, Bolsonaro faz dos fatos uma piada e nos revira pelo avesso com seus absurdos.

Não é à toa que a nova direita brasileira, sem palco para encenar seu projeto político com seriedade no debate público, cavou espaço e holofotes nos programas de humor e de outras bizarrices. Se não fossem as pegadinhas do programa "Pânico", os bate-bolas no "CQC" da Band, as entrevistas longas em horário nobre no "Super Pop" de Luciana Gimenez, o tom circense do "Programa do Ratinho", Jair Bolsonaro e seus comparsas não teriam a chance de aparecer com a força que tiveram. O deboche lhes deu uma espécie de "lugar de fala". O ódio riscou o chão, delimitou um campo de ação do bando, mas foi o deboche que deu o tom da ação.

Nada há nada de novo até aqui.

Radcliffe Brown, antropólogo inglês, um dos maiores nomes da disciplina, devotou boa parte da vida a estudar as relações de parentesco em sociedades tribais africanas. Um dos seus artigos mais famosos, "Sobre as relações jocosas", o pesquisador trata de um hábito dos nativos mais jovens se valerem de brincadeiras bem-humoradas para se referirem ou interagirem com os mais velhos — a quem, teoricamente, deviam ter respeito. As brincadeiras se resumiam a um conjunto de agressões verbais vindas de um lado e os contragolpes, também de péssimo gosto, vindos do outro.

O antropólogo coloca que, aos olhos de um principiante, os gestos podiam ser vistos como um exemplo claro da maneira brincalhona com que os indivíduos enfrentam a dinâmica social nessas sociedades. No entanto, na realidade, o jogo era outro.

Nesses grupos sociais, em geral, há uma clara interdição a qualquer tipo de conversa ou contato entre indivíduos hierarquicamente distantes. Desse modo, é só através do deboche que pessoas hierarquicamente distantes têm a possibilidade de se encontrarem, interagirem e trocar uma ideia. Sem essa estratégia, os anciãos jamais lhes dariam ouvidos.

Há anos a direita brasileira ultraconservadora se valeu de absurdos para conseguir a atenção dos mais sensatos e dos loucos de plantão. Os primeiros pararam para ouvir, se espantaram com os argumentos e teimaram em acreditar que tudo não passava de brincadeira de gente sem noção. Já os outros viram nos absurdos, nas agressões e nos crimes cometidos uma chance de existir e se juntarem ao bando. Enfim, constrói-se vínculo de todo modo. A brincadeira cria um lugar possível para o encontro, por mais que o conteúdo das conversas não valha nada.

Semanas atrás, o Twitter de João Dória, governador de São Paulo, resolveu seguir a mesma toada. Os administradores do perfil começaram a usar do deboche para se livrar das agressões da família do presidente.

Em um tuíte recente, o vereador Carlos Bolsonaro, o 02, para livrar o governo do pai do título de responsável pelo aumento dos preços dos alimentos, culpa os governadores. Em especial, o de São Paulo, a quem chama de "calcinha lycra P". Dória, se apropriando do estilo da família, chama o vereador de Tonho da Lua e reclama que até o preço da sua calça apertada subiu.

O tuíte bate recorde de engajamento. Mais uma vez, o deboche gera audiência, constrói pontes e gera conversa.

Agora, Jair Messias Bolsonaro e sua trupe estão diante de um novo desafio. A Cúpula do Clima e a pressão internacional por conta dos desmandos no combate à pandemia cobram uma posição e estratégia de player global da direita brasileira. É preciso de um pouco de Shakespeare em momentos como esse.

Radcliffe-Brown, o antropólogo, lembra que, para o deboche funcionar, é preciso que os participantes saibam moderar o uso das palavras para criar pontes e não declarar regras. Há um limite no comportamento.

É preciso saber até onde ir. O resto do planeta não imagina quem foi Dercy Gonçalves e como funciona o Brasil. Se sempre funcionou se valer da galhofa para aparecer por aqui, nos fóruns internacionais cobra-se um savoir-faire e uma capacidade de moderar o deboche que o grupo não tem, não domina e não tem capacidade de aprender. Resta saber como reagirão os líderes mundiais à próxima piadinha.

Se a estratégia do deboche como arma de aproximação não funcionar, Bolsonaro corre o risco de ficar sozinho no palco como um bobo da corte: indigesto, louco e sem modos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL