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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na fila da vacina do Brasil pandêmico, comorbidade virou privilégio

Vacinação contra a covid-19 no Parque de Exposições, em Salvador (BA) - Mauro Akiin Nassor/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Vacinação contra a covid-19 no Parque de Exposições, em Salvador (BA) Imagem: Mauro Akiin Nassor/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Colunista do TAB

09/06/2021 04h01

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Tati Bernardi foi apedrejada na última semana. Os leitores não gostaram nada da ironia com os doentes de ocasião: gente que, de uma hora para outra, se lembrou de uma crise asmática aos 12 anos e já se vacinou por causa das brechas dos planos estaduais de imunização. Ela defendeu que eles sofrem de "comorbidades Nutella", um novo cercadinho VIP cheio de progressista de iPhone, tatuagem pelo corpo, que ostenta carteirinhas nas redes sociais e grita "Viva o SUS" com força, enquanto levam a picada milagrosa.

Quando a coluna foi publicada, o Twitter bombou. O Brasil parecia unido outra vez. Coxas e mortadelas colocaram a boca no trombone, contra-atacaram e a acusaram de ser fiscal de comorbidades alheias.

O estigma, como li na coluna Matheus Pichonelli, aqui neste TAB, acomete aqueles que ainda não foram vacinados, mas todos os dias se surpreendem com o fato de pessoas próximas (em geral, também jovens) ostentarem um certificado de vacina. Os fiscais vivem um imbróglio moral. Sofrem de uma inveja boa ("fico feliz por vocês, mas eu queria tanto..."), ficam ansiosos em descobrir de qual doença os amigos sofrem ("Que doença fulano tem? Aids, câncer, problema de coração?"), porém se censuram em respeito à privacidade alheia ("não rola perguntar, não"). Quando muito, resumem a própria curiosidade a duas perguntas: "amigo, qual vacina você tomou? E quanto tempo você ficou na fila?"

Aproveito o espaço para defender Tati, Matheus, a mim próprio e a todos os outros que trincam os dentes quando veem alguém próximo, aparentemente bem, vacinados. A surpresa com a descoberta de que estamos rodeados de gente com comorbidade é fruto da mudança do tom das redes sociais.

Nós sofremos os impactos das transformações sociais da pandemia do novo coronavírus e das contradições do Brasil. O primeiro abriu espaço para que falássemos de problemas e expuséssemos nossas vulnerabilidades num espaço que, até então, fora marcado por excesso de positividade. Já a ineficiência das autoridades brasileiras em conseguir vacina faz com que doentes busquem brechas e busquem o imunizante, tendo a chance de ostentarem o que devia ser um direito de todos.

Os millennials (nascidos entre o final de 1980 e 1995) foram estimulados a buscar uma vida em que o sucesso deveria conviver com propósito, felicidade e qualidade de vida. Não por acaso, alguns de nós caíram de cabeça na onda da produtividade, alta performance e superação e viramos super-heróis. Outros apostaram em práticas de bem-estar, meditação, boa alimentação, atividades físicas e um controle minucioso do funcionamento do corpo. Tanto lá quanto cá, não havia espaço para falar de doenças.

Foi preciso uma onda viral, com escala global e 3,75 milhões de mortos, para tirarmos da pauta a fissura com bem-estar, alta performance e produtividade e colocar na roda temas como doença, mortalidade, definhamento psicológico e vulnerabilidade. O jogo mudou e os doentes tiveram a chance de sair do armário. De uma hora para outra, aquilo que tinha o risco de desabonar a identidade pública ou estigmatizar agora dá acesso à fila prioritária da vacinação e garante o selo de "imunoprivilegiado".

Como aprendemos com Pierre Bourdieu, notório sociólogo francês, os indivíduos sacam da própria trajetória aquilo que funciona, pega bem, no contexto social em que vivem, para se destacar e obter os privilégios da posição. Sabendo das regras do jogo, eles podem se valer da própria condição para ter acesso a oportunidades restritas a poucos.

O problema é que, num país marcado por desigualdades sociais extremas, uma sistema de saúde limitado e escassez de vacinas, estar doente não é um privilégio, mas ter diagnóstico, tratamento e laudo médico que comprove uma doença crônica, é.

No Brasil, 46% dos diabéticos não sabem dos excessos de açúcar no sangue; 36 milhões de brasileiros não sabem que são hipertensos e, dos que sabem, menos da metade faz algum tipo de acompanhamento médico. O que tava ruim agora tá pior. As pesquisas apontam que 3 em cada 10 brasileiros deixaram de realizar check-up desde o início da pandemia. Nesse cenário, aproveitar as oportunidades legais abertas pela fila da xepa da vacina é um privilégio para poucos.

Tati Bernardi foi criticada pelo tom irônico com que tratou as comorbidades alheias. Talvez, tenha errado por classificar as doenças dos outros como "raiz" ou "Nutella". No entanto, foi certeira ao chamar atenção para o fato de que os muitos dos beneficiados são jovens privilegiados.

Mas nada disso é prova de desvio de caráter: é consequência das mudanças do espírito do tempo e da falta de acesso a cuidados básicos. Quando a vacina é pouca, cada um faz o que o pode para garantir a sua. Esse é o Brasil da covid-19.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL