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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Briga Ícaro x Leifert: é bom que a casa-grande se acostume. É só o começo

Ícaro Silva em "Gracinha", álbum visual de Manu Gavassi - Divulgação
Ícaro Silva em 'Gracinha', álbum visual de Manu Gavassi Imagem: Divulgação

Colunista do TAB

28/12/2021 04h01

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Lucas Selfie (ex-"Pânico", ex-"A Fazenda", ex- Raíssa Barbosa) cresceu com a lógica da internet e se inventou como famoso, ostentando um pau de selfie pelas ruas de São Paulo num programa de grande audiência aos domingos. Resiste até hoje como celebridade porque entende como poucos os desejos do público, os meandros do entretenimento nacional e como um episódio sem graça na televisão pode reverberar por anos na internet.

Nos últimos dias, Lucas ganhou mais um atributo: a clarividência dos gurus. Assim que viu a polêmica com o ator Ícaro Silva nas redes sociais, cravou: é marketing!

Ele tinha certeza disso; eu até que me tranquilizei na hora. Agora, tenho dúvidas. Mais de uma semana depois, o debate ficou mais importante do que saber se era pegadinha ou não.

Aos muito ocupados com as festas de fim de ano, eu explico.

Ícaro Silva (ex-oficina de atores da Globo, ex-"Malhação", ex-"Show dos Famosos") é um jovem ator negro, tendo trabalhado em novelas, nas passarelas de moda e com presença frequente na pastelaria do audiovisual brasileiro. Fora da televisão, fez papéis importantes no teatro e no cinema, além de escrever posts-cabeça nas redes sociais sobre questões sociais, os estereótipos de gênero, racismo.

Perto da estreia de mais uma edição do "Big Brother Brasil", sites de notícia especializados em televisão insistiam em colocá-lo como uma das apostas da próxima edição.

Depois de dizer que tudo não passava de boato, Ícaro perdeu as estribeiras com um hater e pediu para que os fãs respeitassem sua história, sua repulsa a dividir banheiro e a participar de "entretimento medíocre". Jamais participaria do "Big Boster Brasil".

Foi uma hecatombe nas redes sociais. Talvez, desde a eleição de Jair Bolsonaro com seus robôs tresloucados, não se via algo parecido. De uma hora para outra, coxinhas e mortadelas foram incentivados a refletir: eram contra ou a favor do simples tuíte? Tinha Ícaro o direito de criticar o reality show de maior sucesso da história da televisão brasileira? Podia ele, um ator contratado pela TV Globo, falar mal do programa capaz de fazer dos pobres, novos milionários, transformar gente desconhecida em VIP da noite para o dia?

Tiago Leifert, ex-apresentador do programa, deixou o sossego da aposentadoria para defender o reality e desqualificou a crítica do ator, dizendo que Ícaro é arrogante e que havia feito um comentário sem sentido. Leifert assegurou: é esse mesmo "entretenimento medíocre" que paga o salário de ator global de Ícaro (o famoso "Sou eu que pago seu salário", expressão aparentada do bom e velho "você sabe com quem está falando?").

A resposta de Leifert viralizou, fez da polêmica um acontecimento e gerou uma série de curtidas e comentários, todos de pessoas brancas. Fiquei tenso com a polêmica.

Nesta segunda-feira (29), em um vídeo gravado, Leifert voltou a se pronunciar e reafirmou o trecho. "Quando eu disse, e está lá bem claro, voltando ao cerne da questão, 'provavelmente ajudamos a pagar o seu salário', eu errei. Não é provavelmente. Nós ajudamos a pagar o seu salário. O seu, o do Boninho, o meu, o do Luciano Huck, o do Mion, o de todo mundo ali (...)." Mais auê nas redes.

Lucas Selfie diria que estamos diante de uma grande e prolongada treta de rede social.

Será que o embate Ícaro x Leifert é pura espuma, mais um daqueles grandes acordos nacionais (os com Supremo e com tudo, ao estilo de Romero Jucá), como defendeu Lucas Selfie, ou estamos diante de mais um caso de racismo estrutural, mesmo?

Vou me explicar.

Desde que nós, negros, por conta das políticas de inclusão, das batalhas cotidianas e da invenção de outras arenas de exposição (como as redes sociais) deixamos os bastidores para assumir espaços de protagonismo, comentários como os de Tiago Leifert são rotina.

É como se, diante da impossibilidade de nos excluírem, de nos inviabilizarem e nos calarem, a elite econômica, cultural e política desse país até nos deixa entrar em espaços antes proibidos, desde que saibamos nos comportar como querem.

O ataque de haters a Ícaro Silva, a surpresa de Tiago (e a confirmação do argumento do salário) e a mobilização da internet revelam a dificuldade do Brasil tradicional de lidar com as novas agências dos negros. Com o tique e o hábito dos colonizadores, muitos ainda acreditam que, depois de invadirmos alguns espaços antes abertos só aos brancos, nos comportaríamos seguindo suas regras, seus acordos e no ritmo imposto por eles, o que nos colocaria mais uma vez do lado mais fraco da corda, em mais uma relação de submissão.

A falta de traquejo do brasileiro com o vocabulário da igualdade — fruto de mais de três séculos de escravidão — mostra novas nuances. Reforça que, quando o carma da raça entra em jogo, pau que dá em Chico continua a não dar em Francisco.

O "Big Brother Brasil" nunca foi unanimidade, nem dentro nem fora da TV Globo. São notórias as críticas do poderoso José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni (ex-chefão da emissora), e do apresentador Fausto Silva (Faustão) ao programa desde o dia ZERO. No entanto, ninguém, nem Leifert, nem sua trupe, jamais se atreveu a criticá-los. Os comentários foram tratados na medida correta e encarados com a relevância apropriada, ou seja, eram vistos como papo de boteco sobre as banalidades cotidianas.

O barulho causado pelo tuíte de Ícaro fala mais sobre os críticos que sobre o ator — do mesmo jeito que o alarde de sua mensagem causa menos pelo trocadilho Brother/Boster e mais pelo que revela do "B" de Brasil. Ter permissão para chegar à casa-grande, não aceitar ficar na cozinha e ainda se sentir no direito de criticar a decoração da sala de estar foi demais, pensaram alguns.

É bom que se acostumem. É só o começo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL