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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que às vezes nossos neurônios simplesmente desistem de nós

Dopamina ajuda no prazer e na sensação de recompensa e satisfação (estímulos muito valorizados pelos jovens de hoje) - Getty Images
Dopamina ajuda no prazer e na sensação de recompensa e satisfação (estímulos muito valorizados pelos jovens de hoje) Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

29/07/2022 04h01

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— É o quê? Não acredito.

Fiquei pasmo quando Primo Paganini, psiquiatra formado pela Universidade de São Paulo com temporadas de conhecimento em Harvard, Columbia e Yale, me disse, como se falasse das flores, que vez ou outra, os neurônios se matam quando as coisas no cérebro vão mal.

O suicídio coletivo tem nome. Chama-se apoptose. Diante dos excessos, os neurônios olham uns aos outros e decidem que do jeito que as coisas andam no cérebro não vai dar para continuar. Eles entram em um ciclo de atrofia, metamorfose e têm a morte como único horizonte almejado. De uma hora para outra, como se perdessem a razão de viver, se matam. E o pior, a culpa é mais da cultura do que na biologia.

Chegamos ao assunto por conta da publicação do recente livro da pesquisadora e psiquiatra da Universidade de Stanford, Anna Lembke. Em "Nação Dopamina", a autora mostra que a incessante busca por felicidade e realização aliada a uma completa incapacidade de lidar com o tédio e frustração tem levado a humanidade a se jogar de cabeça numa série de práticas e comportamentos viciantes.

Em condições normais, dopamina é um neurotransmissor importante ao funcionamento do corpo. Assim como serotonina, endorfina, acetilcolina, a molécula é responsável pela comunicação neural, pelas sinapses. Elas funcionam como meio e como mensagem. Ao mesmo tempo que possibilitam a comunicação entre as células, carregam junto de si um conjunto de comandos essenciais ao funcionamento ao sistema nervoso. No caso da dopamina, seu papel é de ajudar no controle motor, no prazer, na atenção e na sensação de recompensa e satisfação — estímulos valorizados pelos jovens de hoje.

Lembke mostra que o consumo excessivo de comida, bebida e das mais diversas anfetaminas, assim como a fixação por compras de bugigangas baratas nos sites chineses, o desespero por likes e pela repetição de passinhos alucinados do TikTok são caminhos fáceis para acelerar o trabalho dos neurônios dopaminérgicos e, por consequência, os níveis do neurotransmissor no sangue.

A busca por uma superprodução/consumo de dopamina tem mais a ver com cultura do que com a natureza. É mais um reflexo do impacto da dinâmica social sobre o funcionamento dos corpos.

O aumento do individualismo, a disseminação de vínculos sociais cada vez mais frágeis, a imposição de que temos de ser senhores do nosso próprio destino, empreendedores de nós mesmos dentro de um mundo que nos parece perigoso, frágil, arriscado e sem futuro gera uma tensão cultural difícil de se resolver só com água, comida sem glúten e horas de meditação como propagam por aí os gurus. É preciso mais.

Afinal, como corresponder ao mandamento de fazer, fazer, fazer se a crença é de tudo já foi feito? Como realizar um grande projeto, a altura desse indivíduo que se crê um gigante, se o mundo muda com a mesma velocidade dos ventos? Como podemos nos sentir realizados, satisfeitos, plenos, quando na realidade nos vemos falhos, com síndrome de impostor e sempre distantes do ideal esperado para uma boa performance?

Para suportar a barra que é viver em um contexto cultural marcado por tantos dilemas, busca-se por saídas. A mais fácil tem sido apostar pesado no aumento da produção de dopamina no sangue para conseguirmos ter a sensação de que conquistamos algo nem que seja por segundos. Satisfação, prazer, recompensa e plenitude — sensações impossíveis de serem alcançadas pela realização dos sonhos e projetos de vida — agora são alcançadas pelo melhor gerenciamento da cultura sobre o funcionamento dos corpos. Inventa-se uma sociedade dopaminérgica.

Ninguém duvida de que alívio momentâneo é real, mas as consequências futuras para a gambiarra são perversas. Anna Lembke pontua que as taxas excessivas do neurotransmissor no sangue aumentam nossa resistência à molécula e, o que era pra ajudar, acaba por gerar mais problemas. Cada vez, precisamos de estímulos ainda maiores para ter a sensação de prazer e recompensa entregue pela produção de dopamina ao ponto que, ao invés da sensação de bem-estar, terminamos infelizes, depressivos e ansiosos. As perdas são irreparáveis tanto para os indivíduos quanto para a sociedade.

Segundo Paganini, as altas quantidades de dopamina no sangue estimulam o suicídio coletivo dos neurônios dopaminérgicos. É a tal da apoptose. No entanto, para além do papel importante na produção da molécula do prazer e da recompensa, esses neurônios se localizam no córtex pré-frontal — região "mais evoluída do cérebro" — zona responsável pelas relações sociais, propiciadora da vida em sociedade, da empatia, do auto controle e dos vínculos com os outros.

Com a morte desses neurônios, surge um descompasso. As células nervosas do chamado cérebro primitivo, organizado para o salva-se quem puder, impulsividade, agressividade, ação rápida e direta ganham preponderância sobre as outras. E, pouco a pouco, vamos nos tornando seres mais fechados, voltados para a satisfação das próprias necessidades e pouco abertos a diferença.

Os reflexos estão por toda parte. Um cotidiano içado com a ferve de uma gente com a cabeça vazia ou com os miolos moles impulsionado pelas doses altas de dopamina é violento, sofrido, improdutivo, impulsivo e apático.

— É o quê? Não acredito —, eu disse a Paganini.

Pois é. A realidade se impõe para além das nossas crenças.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL