Topo

Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Clubinho de Maresias': tragédia no litoral de SP mostra racismo ambiental

Pessoas trabalham na retirada da lama das ruas após tempestades no litoral norte de São Paulo - Keiny Andrade/UOL
Pessoas trabalham na retirada da lama das ruas após tempestades no litoral norte de São Paulo Imagem: Keiny Andrade/UOL

Colunista do UOL

25/02/2023 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Houve quem duvidasse que 2023 seria um ano de balanço e reflexão, como avisaram os numerólogos, os videntes e os cientistas políticos.

Da invasão golpista de 8 de janeiro à catástrofe provocada pelo dilúvio no litoral norte de São Paulo, o Brasil segue no divã numa encruzilhada existencial. Como um paciente neurótico diante do próprio desejo, com medo de si mesmo, já é hora de assumirmos a responsabilidade sobre o que queremos ser. É preciso decidir se viramos uma nação — uma comunidade imaginada nos termos de Benedict Anderson — ou assumimos de uma vez por todas que somos uma birosca, um arremedo civilizatório, costurado por gambiarras sempre prontas a operar a diferença e criar cisões.

As dezenas de mortos e centenas de desaparecidos vítimas das chuvas torrenciais em São Sebastião (SP) revelam verdades já conhecidas. Inventamos um jeito de viver, produzir e consumir com força de jogar toneladas de carbono na atmosfera e aquecer o planeta em ritmo acelerado. Mas do mesmo jeito que as benesses e os problemas do capitalismo jamais foram compartilhados de forma igual por toda a sociedade, tampouco foram o ônus e o bônus ambiental.

Há tempos, a Terra mostra sinais claros de ter se transformado em um lugar inabitável, mas o dinheiro, a cor da pele e a proximidade dos centros de poder definem cotas diferentes no imbróglio ambiental. Os mais pobres, os negros e os marginalizados gozam menos e sofrem mais.

Não é por acaso que os debates em torno do racismo ambiental voltaram. O termo cunhado pela primeira vez por Benjamin Chavis, ativista do movimento negro americano, em meados dos anos de 1970, foi adaptado e nos ajuda a entender o problema. Quando foi criado, o conceito servia para marcar a dificuldade dos negros norte-americanos em conseguir os melhores nacos de terra no país. A eles, era sempre reservado o resto. Em geral, áreas com menor capacidade produtiva, próxima a lixões ou repletas de resíduos tóxicos e mais propensas às intempéries.

Com a chegada da bancarrota ambiental, o conceito ganhou novos contornos. Hoje, o racismo ambiental também dá conta de explicar as desigualdades nos impactos climáticos. Se é verdade, como apregoa o jornalista David Wallace-Wells, que até 2050 vamos ter de conviver com 140 milhões refugiados climáticos por secas ou inundação, não é difícil imaginar a cor da pele dessas pessoas. Se, como estimam os relatórios científicos, o aumento das temperaturas vai matar 40 milhões de pessoas nos próximos anos, não é um exagero aferir que a maioria dos mortos estará nos bolsões de pobreza espalhados pelo planeta.

Como bem colocou Mariana Belmont, militante da Uneafro em um artigo recente, o problema do planeta não é só o clima, e a culpa da tragédia do litoral norte de São Paulo não é só da chuva. Por lá, chove-se muito e choverá cada vez mais.

A questão sobre a qual precisamos debater é que modelo de sociedade é esse que reserva para as elites as faixas de terra mais segura, próximas ao mar, e empurra os pobres encosta acima. Como reagiremos daqui pra frente aos Clubinhos de Maresias que se unem contra a construção de moradias populares, seguras, com medo da desvalorização das suas mansões com a chegada de pobres. Ou ainda, como combateremos um modelo de Estado que continua a escolher quem vive e quem morre baseado na cor da pele ou da conta bancária.

A chegada da República, o estabelecimento da democracia e das instituições de estado não foram capazes de nos livrar da ideia escravocrata de que há o povo e o "Zé povinho" no Brasil, separados por muros e com acessos desiguais a vida.

A elite paulista precisa entender que se não deixar seus racismos de lado, não vai ter helicópteros, motorista, babás, amigos de ONG dispostos a colocar os pés na lama e nem praia para se banhar.

Se nada for feito, o Brasil corre o risco de acabar antes do planeta.