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Astrid, Prioli e o São João: por que é erro congelar a cultura no formol
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Era de se esperar.
A loucura dos coaches de nutrição a ditar o que é certo ou errado na dieta dos brasileiros não tinha como dar em um bom lugar. Enfrentar as festas juninas sem a lactose das canjicas, o açúcar das cocadas ou a proteína animal dos churrasquinhos já mostra graves consequências. Ninguém entende mais ninguém.
O fato mais recente foi o entrevero entre a apresentadora Astrid Fontenelle e a pensadora pop Gabriela Prioli no último "Saia Justa", o famoso programa de debates do GNT.
Às vésperas do dia de São João, a trupe achou de bom tom discutir a intensa transformação vivida pelas festas juninas espalhadas pelo Brasil. De uns tempos para cá, os moderninhos do Oiapoque a Chuí decidiram cair de cabeça na época festiva e reinventá-la.
As quadrilhas animadas já dançam axé. Baião e forró deram lugar às dancinhas trendies do TikTok; o padre e os noivos vendem abadás e presença vip na cerimônia. Nem beijo se dá mais. A barraca foi banida pelas hordas de eleitores conservadoros do imbrochável.
Astrid não gostou. Em nome do povo brasileiro, falou com o coração e pediu que mantenham o amendoim cozido, Luiz Gonzaga e a tradição da festa inventada em tempos imemoriais. Prioli, com um tom professoral, rebateu. Com a embocadura de quem entende mais de livro que de festa, desfiou uma série de clichês, reforçou que as festas devem mudar de acordo com o gosto da clientela. A internet foi ao delírio, como se estivéssemos diante de uma disputa de titãs.
É preciso ir com calma. As discordâncias entre as apresentadoras moram mais na forma que no conteúdo. Eu concordo com as duas.
Tanto Gabriela quando Astrid devem concordar que, para que as manifestações culturais se mantenham vivas, precisam estar diretamente conectadas aos nervos de uma dada sociedade. Tentar congelar qualquer manifestação cultural no tubo de formol é um erro. A cultura avança, as pessoas se transformam e, nesse jogo, não devia ser um choque para ninguém compreender as inovações.
Hoje, ninguém dança quadrilha como nossos bisavós e as novas gerações também não o farão. Talvez prefiram dançar com o último modelo de inovação do óculos de realidade virtual da Apple, sozinhos, como se estivessem em um delírio coletivo. É assim desde sempre.
Os festejos juninos nasceram como uma festa pagã ainda na Idade Média. Longe do controle bizarro da sisuda Igreja, camponeses da Península Ibérica comemoravam o resultado da colheita e a chegada do verão com muita comida, bebida e festa. Com o passar do tempo, a igreja capturou a brincadeira. Aproveitou a oportunidade para celebrar Santo Antônio, São João e São Pedro, santos católicos lembrados nos dias de junho. De uma hora para outra, o que servia comemorar a fartura da roça se transformou em um momento de exaltação do panteão de divindades católicas.
Com a colonização, a confusão sacro-pagã aterrou no Brasil e se misturou ao catolicismo popular do campesinato pobre do Nordeste do país. De lá pra cá, a festa se espalhou e transformou-se em uma tradição com força de mobilizar multidões no mês de junho há gerações. Seja na Bahia, Pernambuco, Paraíba etc. Assim são as tradições.
Eric Hobsbawn e Terence Ranger, no clássico livro "A Invenção das Tradições", lembram da contradição fundamental inerente aos costumes e rituais mais tradicionais. Por serem repetidos com frequência, mais ou menos do mesmo jeito, há tanto tempo, nós tendemos a acreditar que as tradições remontam a tempos míticos e sempre foram como são. Não é verdade.
Tradições são inventadas e reinventadas cotidianamente para que continuem a fazer sentido, conectadas às nossas memórias coletivas e criando uma forte conexão do presente com outrora.
Moderna do jeito como é e sem apego a naftalinas, Astrid Fontenelle deve concordar. No entanto, o que a apresentadora pede é que sigamos com calma, de forma lenta, com as mudanças no ritual. Caso contrário, elas deixarão de funcionar como tradição e não cumprirão seu papel de conectar presente, passado e futuro num só lugar.
O problema é que o capitalismo tem pressa. A entrada massiva de marcas, dos influenciadores ávidos pelos melhores posts, da camarotização das apresentações dos artistas e da transformação do foliões em clientes e consumidores tem esvaziado os sentidos da festa. E, sem sentido, não há tradição.
Sabendo da preferência de Gabriela Prioli por citações mil, diante da imbróglio, me lembro de um trecho de um samba de Paulinho da Viola quando se viu diante do mesmo dilema da mutação do samba:
"Tá legal, eu aceito o argumento
Mas não me altere o samba tanto assim
Olha que a rapaziada está sentindo a falta
De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim
Sem preconceito ou mania de passado
Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar
Faça como um velho marinheiro
Que durante o nevoeiro
Leva o barco devagar"
É preciso ir com calma.
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