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Paulo Sampaio

REPORTAGEM

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Lésbica feminista relembra sofrimento com violência doméstica: 'Como pude?'

Pose em Mongaguá: ex-namoradeira assumida, Dora Cudingola afirma que agora está "quieta" - Fernando Moraes
Pose em Mongaguá: ex-namoradeira assumida, Dora Cudingola afirma que agora está "quieta" Imagem: Fernando Moraes

Colunista do UOL

18/03/2021 04h00

Passara-se quase um ano desde que a militante feminista Dora Cudignola havia se separado do marido e se assumido lésbica, quando ela se perguntou: "Como pude?" Ex-voluntária em uma ONG que acolhia vítimas de violência doméstica, Dora agora estava vivendo, ela própria, um relacionamento abusivo. E o que mais a surpreendia: a agressora era uma mulher.

"Eu costumava ligar a violência doméstica aos homens. Passei muitos anos ouvindo histórias apavorantes de agressão, acolhi e orientei inúmeras vítimas. De repente, não conseguia usar minha experiência para resolver uma situação pessoal. Chorava dia e noite, sem encontrar uma saída. Não entendia como perdi o controle e cheguei àquele ponto." Na ocasião, meados dos anos 1980, Dora tinha pouco mais de 30 anos. Hoje, está com 68.

No apartamento de frente para o mar em que mora com uma amiga em Mongaguá, litoral sul de São Paulo, ela contou ao TAB como fez para superar sua malsucedida estreia em um relacionamento homoafetivo. Disse que o trauma não interferiu em sua orientação sexual.

"Eu estava muito segura a respeito da minha atração por mulheres. Tentei sentir prazer com homens, mas nunca consegui gozar. A vontade, que já não era tanta, acabava com a penetração."

Por outro lado, sua agressora a satisfazia plenamente. "O sexo entre nós era muito intenso, e por isso eu acabava cedendo. Depois, chorava, ela pedia desculpas, e tudo voltava a acontecer."

Hoje, a cama de casal king size é compartilhada com a secretária aposentada Rita Reinó, "uma amiga maravilhosa": "Tentamos ser mais do que isso, mas não deu certo"  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Hoje, a cama de casal king size é compartilhada com a secretária aposentada Rita Reinó, "uma amiga maravilhosa": "Tentamos ser mais do que isso, mas não deu certo"
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Facão e surra

Foram mais de três anos de maus tratos físicos e psicológicos. O casal vivia o que Dora classifica como "amor doentio". Ela conheceu Maria quando começou a trabalhar em uma filial do supermercado Jumbo Eletro, na zona leste da capital. "Eu tinha me separado, não dava para continuar fazendo apenas serviço voluntário. Precisava de um trabalho remunerado", conta.

Pouco tempo depois que as duas iniciaram o relacionamento, elas deixaram o emprego no supermercado e abriram um bar. O álcool contribuiu para potencializar o comportamento abusivo de Maria. Oito anos mais nova, ela sentia um ciúme desmesurado de Dora. Além de destratar a companheira, agredia homens que a cortejavam.

Certa vez, ameaçou um vizinho com um facão. Ele prestou queixa na polícia, ela foi obrigada a deixar a arma na delegacia, mas o caso já havia se tornado um escândalo no bairro.

Em outro momento, deu uma surra no ex-marido de Dora. "Ele foi atrás de mim no bar, porque percebeu que eu não estava bem, e encontrou só a Maria. Ela arranjou um jeito de embriagá-lo, o convenceu de que ele não estava em condição de voltar sozinho para casa, e o acompanhou. No caminho, bateu muito nele. Bateu, bateu. Eu chorei, disse que não acreditava que ela tinha feito aquilo com uma pessoa vulnerável, que nunca se intrometeu na nossa vida."

Ex-marido civilizado

O marido, com quem Dora tinha uma filha de 10 anos, reagiu com civilidade. "Ele ainda estava ligado a mim e era uma pessoa maravilhosa. Nunca nos desentendemos."

Naquela época, os mecanismos de proteção à mulher em situação de violência eram praticamente inexistentes. A punição imposta ao agressor se resumia, em muitos casos, à oferta de cestas básicas para famílias carentes.

A promotora Silvia Chakian, que trabalha com enfrentamento da violência doméstica e familiar, lembra que esse cenário só foi alterado com a sanção da Lei Maria da Penha, em 2006, que prevê proteção à integridade física, psicológica, patrimonial, moral e sexual da mulher. "O assunto deixou de ser considerado de foro íntimo e passou ser visto como questão de Estado."

A propósito do caso de Maria e Dora, Silvia esclarece que a lei protege todas as mulheres, independentemente da orientação sexual delas. "Talvez ainda haja desconhecimento sobre isso, é importante divulgar que o dispositivo abrange toda representante do gênero."

O silêncio das inocentes

Para a psicóloga Valéria Fátima da Rocha, 48, que atende pacientes LGBTQI+, a mulher lésbica não tem o mesmo lugar de fala que a heterossexual. "Onde não há pênis, não existe casal. A relação é invisibilizada. Se a mulher está dentro do armário, o assunto fica ainda mais silenciado. Com quem ela vai conversar sobre violência doméstica?"

Valéria fala com conhecimento de causa. Lésbica assumida, ela é filha de Dora e acompanhou de perto a saída da mãe do armário. Diz que sofreu mais com a separação dos pais. Na ocasião, foi morar com a avó materna.

"Vivi a angústia de qualquer filho de pais separados. É claro que havia também o preconceito, eu era 'a filha da sapatona'. Mas apesar de a gente morar em uma região culturalmente atrasada, eu sempre acompanhei minha mãe nas reuniões com mulheres progressistas e sabia que aquele grupo pensava além daquela realidade."

Por conta dessa precocidade, Valéria se sentiu à vontade para perguntar a Dora sobre a natureza do relacionamento dela com Maria. "Toquei no assunto porque havia abertura para isso. No momento em que fiz a pergunta, tinha condição de ouvir a resposta."

Na adolescência, quando se deu conta de que também se sentia atraída por mulheres, vieram outras questões: "O peso social de ser lésbica era muito maior do que hoje. Eu pensava: 'Será que, de tanto querer fugir disso, eu estou me aproximando?' 'Será que eu sofri influência da minha mãe?' Eu não queria olhar para o meu desejo. Mas o tempo foi passando, eu acomodei isso tudo em um lugar confortável para mim, e, com 24, 25 anos, consegui experimentar o que eu estava sentindo."

Com Valéria, em 2017, na balsa que vai de Porto Seguro para Arraial d'Ajuda - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Com Valéria, em 2017, na balsa que vai de Porto Seguro para Arraial d'Ajuda
Imagem: Arquivo Pessoal

Dora diz que conversou várias vezes com a filha sobre aquele momento, e até perguntou se ela se ressentia de desatenção. "Sempre que eu ia visitar a Valéria, a Maria logo aparecia no portão para cobrar minha presença em casa. Eu deixava minha filha para ir com ela", lembra. Contudo, ela diz hoje que não se sente culpada: "Era minha vida, e eu quis viver aquilo."

Beata, não

O entusiasmo de Dora pela militância começou nos anos 1970, na paróquia de São João Batista, que ficava perto de onde ela morava. Não como beata, mas como voluntária nas comunidades eclesiásticas de base, movimento ligado à Teologia da Libertação (corrente inclusivista ligada à igreja católica). Na época, participou dos trabalhos de uma ONG holandesa chamada SOF (ela não se lembra o significado da sigla).

A partir de então, frequentou diversos grupos de acolhimento a mulheres e famílias vítimas de violência. Nos piores momentos de seu relacionamento com Maria, foi acudida pela feminista Cidinha Kopkac, que, como ela, tinha sido casada, era mãe (de três filhos) e assumiu-se lésbica.

"A Cidinha não sabia mais o que fazer para me tirar daquele inferno. Eu virei um trapo. Me olhava no espelho e não reconhecia a mulher vaidosa que, quando era casada, estava sempre com o cabelo arrumado e andava de salto alto em casa."

Depois de Maria, Dora namorou muito e teve pelo menos dois relacionamentos longos, de 12 e 13 anos, com mulheres que conheceu em salas de bate-papo na internet. Silvia, a última, morta em decorrência de um AVC, é considerada a mulher de sua vida. "A relação era perfeita. Tinha amor, confiança, companheirismo, tudo", lembra.

Viúva, Dora diz que sua última companheira, morta em decorrência de um AVC hemorrágico, foi a mulher de sua vida: "É, até hoje" - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Viúva, Dora diz que sua última companheira, morta em decorrência de um AVC hemorrágico, foi a mulher de sua vida: "É, até hoje"
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Paulo Freire

Na gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1993), Dora engajou-se na ONG Cecopi (Centro de Comunicação e Educação Popular do Itaim Paulista), ligada ao projeto MOVA (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos). Criado pelo educador Paulo Freire, de quem se tornou admiradora incondicional, o MOVA possibilitou a ela uma longa carreira de professora de ensino fundamental — pela qual se aposentou.

Nos últimos tempos, por causa da pandemia de covid-19, Dora encontrou dificuldade para agendar uma histeroscopia cirúrgica emergencial no Hospital do Servidor Público. O procedimento é realizado para investigar sangramentos incomuns no útero. Ela acabou conseguindo marcar a internação graças ao trabalho voluntário do advogado Rodrigo Bertolazzi, que atende idosos da comunidade LGBTQI+ na ONG Eternamente Sou — na qual Dora é voluntária e assistida.

Bertolazzi entrou com uma "ação de obrigação de fazer" contra o IAMPSE (Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual): "O médico tinha emitido a via para a realização da histeroscopia, mas o teleatendimento do instituto se recusou a agendar."

Três dias antes da (bem-sucedida) cirurgia, quando nos recebeu em Mongaguá, Dora parecia muito tranquila. "É coisa simples. Minha nora [mulher de Valéria] vai vir me buscar aqui, e depois me trazer de volta."

Entre voluntários e assistidos, ela manda um beijo na festa de Natal da ONG Eternamente Sou, que teve show da cantora Mylena Jardim - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Entre voluntários e assistidos, ela manda um beijo na festa de Natal da ONG Eternamente Sou, que teve show da cantora Mylena Jardim
Imagem: Arquivo Pessoal

Regata e shortinhos

Entre um cigarro e outro, comentou que se distrai em conversas com lésbicas nos grupos "Universo Feminino" e "Mulheres Sensíveis", no Instagram. De camiseta regata, shortinhos e chinelos, desceu para posar para as fotos na praia. Preocupada em proteger o rosto do sol, levou chapéu e óculos escuros.

Mais de 30 anos depois da nefanda experiência com violência doméstica, ela não apresenta nenhum sinal de amargura. Fala do relacionamento com o devido respeito, mas localiza Maria em um tempo remoto, e ri com vontade das passagens tragicômicas.

Durante o relato, pergunta com leveza: "Vocês aceitam uma cervejinha?"