Topo

Paulo Sampaio

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

'Quando saí da degradação do abrigo para a rua, me libertei', diz catadora

A minguada coleta de Anne Caroline durante a fase emergencial em São Paulo: a alternativa é vender bala de goma no sinal - Fernando Moraes/UOL
A minguada coleta de Anne Caroline durante a fase emergencial em São Paulo: a alternativa é vender bala de goma no sinal
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Colunista do TAB

25/03/2021 04h01

O Brás está irreconhecível na sexta-feira (19), quinto dia da fase emergencial do Plano São Paulo — que impõe restrições até a serviços essenciais. As ruas do bairro da zona leste da cidade, onde normalmente circulam cerca de 300 mil pessoas por dia, encontram-se desertas. Exceto por um ou outro comerciante desobediente, as lojas permanecem fechadas. Ainda assim, a catadora de lixo reciclável Anne Caroline Barbosa, 28, e o marido, Lucas Martins da Silva, 22, perseveram na busca de papelão, plástico, alumínio, cobre, papel branco e metal. Nos bons tempos, eles chegavam a coletar mais de uma tonelada por dia, em duas carroças, o que lhes rendia até R$ 300. Agora, dizem, seu faturamento é "zero".

Naquela sexta, como sempre, o casal chegou por volta das 6h à esquina das ruas Vautier com Itaqui, ponto que estabeleceram como deles. Não fosse por quatro ou cinco caixas de papelão pequenas, a carroça de Anne estaria vazia. Ela diz que já puxou 600 quilos em um dia, e isso inclui o trajeto de 5 km até o ferro-velho, no Pari, onde o casal vende o que coletou. "Tem catador que pega o reciclável enquanto roda, pelo caminho. Nós estacionamos a carroça, e circulamos a pé. A gente conhece a dinâmica das lojas, os horários, então não temos essa necessidade de correr atrás."

Contadora de histórias

Sem grandes expectativas naquele dia, Lucas deixou em casa sua carroça, bem maior, com capacidade para transportar 700 quilos. Ele parece desacorçoado, enquanto Anne se mostra animada com a perspectiva de dar uma entrevista. Matriculada no primeiro semestre de jornalismo, ela se declara fascinada pela profissão. Se estivesse em dia com o pagamento da internet, poderia acompanhar remotamente o curso, pelo qual paga R$ 300 de mensalidade na Unip (Uversidade Paulista).

"Além de tomar conhecimento de uma infinidade de assuntos e informar a respeito de tudo, o repórter ainda revela para as pessoas uma realidade a que elas não têm acesso no dia a dia", acredita. Com um repertório de tirar o fôlego, Anne Caroline diz que sempre quis ser uma "contadora de histórias reais". Como exemplo, cita a dela mesma, que, por assim dizer, já é quase um épico.

Começa em Corumbá, cidade a 420 km de Campo Grande (MS). Filha de educadores físicos, ela e suas duas irmãs estudaram nas escolas em que os pais davam aula, e tiveram apoio para concluir o curso superior. Quando migrou para São Paulo, em 2017, Anne já era formada em design gráfico e tinha um filho, que ficou com o pai. "Desembarquei aqui com aquela ideia de 'cidade que nunca dorme', onde tudo acontece. Ouvia dizer que a cena artística era vibrante..."

Viagem ao inferno

Munida basicamente de entusiasmo, sem reservas financeiras, ela se hospedou na Casa de Apoio Maria Maria, um abrigo no Canindé, na zona leste. Pretendia ficar até arranjar uma ocupação ligada a sua área. Nunca conseguiu. Então, começou sua "viagem ao inferno". "Passei a mandar o meu currículo para qualquer oferta de emprego que me possibilitasse sair daquele lugar."

Anne morou no abrigo por quatro meses, tempo suficiente para acabar com seu encanto pela cidade. "Eram 25 mulheres dormindo em um quarto, praticamente uma encostando na outra. O conflito era constante. Todo mundo com problemas grandes, da vida toda, muitas com crianças, gente roncando, gritando, falando enquanto dormia."

Unidos pelo infortúnio

Previsivelmente, ela queria fugir daquela realidade. "Nada acontecia, eu não via luz no fim do túnel. Em dado momento, eu me senti fraca e me liguei a pessoas que me apresentaram ao vício. Comecei a usar cocaína." Quando conheceu Lucas, em julho de 2017, não sabia que ele era usuário de crack. "Ele me ensinou o serviço de reciclagem, e passou a compartilhar comigo as pedras."

Os dois tinham se visto pela primeira vez no Restaura, uma lanchonete em que os abrigados costumavam almoçar. Em pouco tempo, o infortúnio os uniu. "Eu via ela passando, ela me via, um dia a gente se conversou e não se separou mais."

No desalento da carência mútua, Anne cogitou realizar o sonho do companheiro de ter um filho. A tentativa de engravidar durou meses até que, quando já havia desistido, Anne começou a se sentir enjoada. Só então, com dois meses de gestação, deixou o crack.

Anne e Lucas se conheceram na Restaura, lanchonete onde os frequentadores do abrigo Maria Maria costumavam almoçar: ele já era usuário de crack; ela passou a ser - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Anne e Lucas se conheceram na Restaura, lanchonete onde os frequentadores do abrigo Maria Maria costumavam almoçar: ele já era usuário de crack; ela passou a ser
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Tarde demais

Melissa nasceu em agosto de 2018 com uma cardiopatia congênita. A Tetralogia de Fallot incapacita o coração de mandar oxigênio suficiente para o resto do organismo. O bebê apresenta dificuldade para respirar, chora constantemente, a pele adquire uma coloração azulada, as unhas ficam escuras. O casal procurou o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, ligado a Secretaria Estadual de Saúde, e colocou a menina na fila da cirurgia corretiva. Depois de dois anos de espera, a cirurgia foi realizada com sucesso.

Procurada, a assessoria da Secretaria Estadual de Saúde preferiu não se manifestar sobre a fila de espera e a ordem de urgência que eles seguem nos atendimentos, sem antes localizar o prontuário de Melissa no instituto (o que não aconteceu até a publicação do texto).

Lucas e Anne, com Melissa - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Lucas e Anne, com Melissa
Imagem: Arquivo Pessoal

Anne passou a gravidez puxando carroça, mas não se arrepende de ter saído do Maria Maria. "A verdade é que, quando deixei a degradação do abrigo, para morar na rua, me libertei. Muita gente escolhe isso. O que adianta ter acesso a privada e a chuveiro, se está tudo entupido e se há cocô pelo chão do banheiro? Pelo menos, o dono do ferro velho nos deixava tomar um banho decente."

A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social informa que "a munícipe Anne Caroline Barbosa esteve no Centro de Acolhida Maria Maria e teve acompanhamento pela equipe técnica especializada, participou de cursos, palestras diversificadas e outras atividades socioeducativas pertinentes à reinserção social e retomada ao mercado de trabalho".

Anne ri. "Saí de lá pesando 50 kg."

Fabricação própria

Muito desenvolta em um short de lycra azul-turquesa, sandália de plástico rosa e camiseta preta com os dizeres: "I (coração) just dance", em letras coloridas, Anne explica que as carroças foram montadas por ela e Lucas, com peças doadas ou compradas por seus apoiadores nas redes sociais.

Ela conta com quase dois mil seguidores na página "Anne Catadora" do Instagram. Desde Corumbá, abastece um blog de poesias batizado Beddingfeld, em homenagem à protagonista de "O Homem do Terno Marrom", de Agatha Christie. No Dia Internacional da Mulher, entrevistou quatro catadoras em um programa no canal Cataflix, do YouTube.

"A mulher, nesse ambiente, não é nada. Se um catador tem um problema comigo, ele simplesmente me ignora e vai conversar com o meu marido. Na periferia, piora. O entendimento que se tem do papel da mulher é ainda mais machista."

A Prefeitura de São Paulo não tem uma estimativa do número de catadores autônomos que circulam na cidade — nem o total, nem por gênero.

Atrás dos holofotes

Lucas parece orgulhoso da mulher. Usuário de crack desde os 14 anos, já foi internado três vezes. Atribui a força que precisou para abandonar o vício a Anne. Não chegou a concluir o ensino médio e vai prestar o Encceja este ano, pela segunda vez. Da primeira, não conseguiu a pontuação em matemática. "Não penso em curso superior. Quero estudar para ser alguém e dar o melhor para a minha família."

Algo no discurso do catador faz parecer que há forte influência de Anne. "Ele fica atrás dos holofotes", diz ela, mais carinhosa do que arrogante. Na maior parte do tempo, Lucas permanece contemplativo, o queixo apoiado no puxador, enquanto ela explica proativamente o funcionamento daquele mercado.

"O preço do quilo do reciclado varia de acordo com o valor do alumínio no mercado externo. No momento, estão pagando R$ 0,95 o quilo, uma taxa ótima. Costumava ser R$ 0,20. Acontece que a concorrência aumenta na mesma proporção. Então, de repente, todo mundo vem catar reciclável: quem vendia água, açaí, chocolate, ou qualquer coisa na rua. Ao mesmo tempo, está tudo fechado, não tem o que coletar."

Relações-públicas

Enquanto caminha pelas ruas vazias, Anne aponta as lojas que, em tempos salubres, mais descartavam material reciclável. Cita uma de arranjos florais. "É relativamente nova, trouxe muita coisa diferente. As blogueirinhas e influenciadoras começaram a falar dela, atraíram muita gente. Da primeira vez em que vimos a calçada forrada de papelão, nem acreditamos."

O trabalho de relações-públicas dela é primordial para o sucesso do negócio. A fim de fidelizar os "fregueses" de reciclável, ela conta que costuma visitar as lojas mais importantes e sensibiliza os gerentes com a história da mulher que teve possibilidade de estudar, e agora está catando papelão na rua. Diz que precisa sustentar uma filha e mal tem onde morar: "É minha carta na manga", diz.

Por mais que boa parte dos comerciantes sejam simpáticos à causa de Anne, nada ali é garantido. Ela afirma que a disputa na área é "selvagem". "Tem catador que não respeita o espaço do outro. Muitas vezes, infelizmente, isso acaba em violência. Já vi briga de faca." Ela própria diz que se envolveu em alguns duelos. Apanhou? "Nunca." Bateu? "Já! Quer dizer, bati para me defender. Eu não sou de briga."

Enquanto Melissa vive com a bisavó, no interior ("ela é grupo de altíssimo risco"), o casal agora mora em uma casa na zona norte. "É um barraco de madeira, na favela da [avenida] Zaki Narchi", explica Lucas. "A gente chegou lá, disse que precisava de um lugar para morar, pagamos dois meses de aluguel em um barraco desocupado, então o representante da comunidade nos cedeu um terreno."

Miliciano? "Não. Miliciano é no Rio."

Bala de goma

O próprio casal construiu o barraco. Eles dizem que não pagam nada para morar no local. "A vantagem para quem cede o terreno é conseguir manter a área limpa. Antes, tinha muito lixo ali." Na favela, o inimigo mais temido é o fogo acidental (ou não) nas casas de madeira. Um incêndio em julho de 2020 transformou a deles em cinzas. "Às vezes, basta um 'noia' queimando a pedra..."

A travessia da fase emergencial se configura o momento mais árido de um período que vem se mostrando devastador para as finanças do casal. Como atividade alternativa, Anne vende bala de goma no farol, ou, em casos extremos, pede dinheiro a quem passa.

"A gente precisa colocar comida na mesa. Vendo as balas a R$ 1. Às vezes, em um dia inteiro, compram uma. Eu entendo o medo que as pessoas têm de abrir a janela do carro, que piorou com o risco da covid-19."

Crise de ansiedade

Enquanto a vida segue ao deus-dará, Anne conta que já sentiu pelo menos três vezes os anunciados sintomas da covid-19. Procurou atendimento no pronto-socorro municipal doutor Lauro Ribas Braga, em Santana, mas, segundo ela, nunca solicitaram o exame. "Havia acúmulo de pessoas até do lado de fora, e faltavam insumos. Em uma das vezes, o segurança informou que a pediatria tinha pegado fogo e que, por isso, o atendimento estava suspenso."

Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde afirma que o hospital recebe cerca de 300 pacientes por dia e que não faltam insumos. Por intermédio da assessoria de imprensa, diz que Anne foi atendida ali quatro vezes, e em uma delas, depois de ser examinada e medicada, "deixou o local antes de se submeter à coleta de sangue para o exame SWAB [sic]". Nas demais, foi orientada a procurar uma UBS (Unidade Básica de Saúde), por conta de crises de ansiedade.

Apesar de a secretaria comunicar que o atendimento do pronto-socorro permanece normal, os recordes de mortes por covid-19 batidos diariamente indicam que, assim como Anne, o brasileiro nunca contou tanto com a misericórdia divina. "Quer saber? Eu acho que agora tá igual pra todo mundo", diz a catadora.