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'Me comparo a Maria Madalena', diz 'doutora em teologia' Ângela Bismarchi

No pátio da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, o calor inclemente desafia a fé da ex-destaque de escola de samba Angela Bismarchi. "Jesus!", ela exclama, atrás de uma máscara de plástico duro que parece servir mais de enfeite que de proteção contra a covid-19. Naquele sábado (27), dia em que recebeu seu diploma de "doutora em teologia" (não se trata de doutorado, mas de curso livre), Ângela usou uma sobreposição de trajes e acessórios que evocava o sufoco da sensação térmica.
Adornada por uma estola roxa com franjas brancas, a beca de tecido grosso cobria um vestido de malha preto, longo e justo comprado "lá fora". "Acho que é Guess." Solto em queda livre, o megahair loiro agonizava sob uma umidade relativa do ar na faixa dos 70%. Nas mãos, a formanda levava duas bolsas — uma feita de "couro de crocodilo" preto; outra menor, de pele sintética de cobra, com spikes; nos pés, calçava um par de sandálias de strass prateado.
Cristã convertida há seis anos, Ângela Bismarchi diz que esvaziou substancialmente seus armários — mas ainda necessita de três quartos da casa para guardar as roupas e os cerca de 100 pares de sapatos. "Continuo me vestindo bem, porque meu corpo é o templo do Espírito Santo. Preciso me preparar para recebê-lo", justifica. Pele do rosto coberta por uma espessa camada de base, lentes de contato verdes e alongamento de fibra nas unhas, ela diz que tudo em sua vida passou a depender da vontade de Deus. "Na hora em que Ele chegar para mim e disser: 'Olha, Ângela, deixa disso', eu me desfaço de tudo. Mas tem de ser dito por Ele. Não adianta vir o irmão da igreja. Evangélico julga muito."
Contribuição em aula
Ângela foi diplomada com outros vinte e três evangélicos, entre eles seu marido, o cirurgião plástico Wagner de Moraes, 73. O casal concluiu o curso na Facite (Faculdade de Ciências e Teologia), que fica em Itaboraí, na região metropolitana do Rio, e cobra R$ 400 de mensalidade. Com dois anos de duração e 410 horas/aula, o curso não exige mestrado ou bacharelado em teologia, tampouco é reconhecido pelo MEC (Ministério da Educação e Cultura). "Tem validade intracorpus, apenas no meio religioso evangélico", explica o reitor da Facite, Francisco Martins. "A vantagem é que a gente conta com liberdade para oferecer uma pesquisa menos secular, ou científica, e mais ligada à religião, à história e à identidade da igreja."
Antes da cerimônia, Ângela e o marido foram muito festejados por Martins e os professores. "O casal contribui demais em sala de aula", diz o reitor. O colega Aldemiro Camboí de Sá, que se apresenta como psicólogo, historiador e bacharel em direito, passa a mão por cima do ombro de Wagner, olha para o repórter e diz: "Grande médico cirurgião, amado por todos." Orgulhoso, Moraes afirma que a Bíblia se tornou o livro de cabeceira dele e da mulher: "A gente estuda toda noite, por duas horas. Não são dois minutos. E isso nós fazemos na maior felicidade, ninguém nos obriga. Aí é que está a transformação", ensina.
Cerca de 120 pessoas compareceram à cerimônia, que durou pouco mais de uma hora. Ao som de Ode à Alegria (da 9ª Sinfonia de Beethoven), os organizadores acomodaram os convidados com espaçamento de mais de 1 metro. Além de Martins, falaram no púlpito o coordenador do curso, Aluísio Bacelar; o presidente da catedral, reverendo Renato Porpino; o paraninfo da turma, Antônio José; e o patrono, Evaldo Beranger. Fizeram as preleções de praxe: "Essa turma vai ficar na história da faculdade...", disse um; "Não foram poucas as dificuldades enfrentadas: o cansaço, a vontade de parar, a pandemia...", lembrou outro. A produção executou o Hino Nacional.
Do carnal para o espiritual
Frequentadora da Comunidade Batista Oceânica, em Niterói, a ex-destaque afirma que não pretende usar sua imagem para atrair fiéis nem doações. "Minha igreja é recatada. Não é como a Universal, que a pessoa aparece e diz: 'Olha como eu sou espiritual'. Esse é o grande problema da religião hoje. Na Bíblia, está escrito que Paulo não vendia a Palavra. Não mercanti...canti..canti.. como é que se diz mesmo?"
Wagner: "Não mercantilizava a Palavra."
Vinte anos mais velho e dois palmos mais baixo que a mulher, o médico não sai de perto dela. Ele a ajuda a concluir suas pensatas e responde a quase todas as perguntas feitas a ela. Aproveita para falar de si. "Quando a gente se converte, nasce de novo. A Ângela, hoje, é outra pessoa. Eu também!"
Ângela concorda: "Eu fui do carnal para o espiritual."
"Vou te dar exemplo", diz ele. "Um dia, antes da conversão, eu cheguei em casa morto de fome, e encontrei minha mulher em frente ao espelho, sofrendo por causa de uma celulite na coxa que só ela enxergava. E a janta não saía. Eu disse: 'Sabe de uma coisa?' Liguei para a clínica: 'Não vai embora ninguém! Tô levando a Ângela para uma lipo!'"
"Eu era obcecada com o meu corpo. E tinha muita cobrança da mídia! Do público!", lembra ela.
Embelezamento da vulva
Nem Wagner nem a mulher sabem precisar o número de plásticas a que ela se submeteu. Famosa pelas cirurgias, Ângela chegou a anunciar 47. Agora, diz que não chegaram a quinze. "Muita coisa era dita para divulgar meu nome", conta. Entre os procedimentos mais alardeados, destaca-se a reconstituição do hímen. Quem lembra é Wagner: "Eu estava com ela na praça da Apoteose, no fim do desfile, quando uma repórter perguntou: 'Qual vai ser a cirurgia do ano que vem?'. Nós tínhamos lido que, na França, algumas mulheres recém-saídas do primeiro casamento estavam oferecendo ao segundo marido a virgindade recuperada."
Ângela recuperou a dela, mas prefere falar de outro jeito: "Foi mais o embelezamento da vulva, né, amor?"
O lado da sensualidade
Assim como Wagner, o segundo marido de Ângela, Ox Bismarchi, com quem ela estava casada quando estreou na Sapucaí e nas plásticas, também era cirurgião. De acordo com Ângela, ele a transformou em um "outdoor ambulante". "Sou formada em atriz (sic), tenho DRT (registro profissional, outorgado pela Delegacia Regional do Trabalho) e tudo. Mas ele me fez desfocar da carreira, me levou para esse lado da sensualidade, do Carnaval, das plásticas."
Wagner, que tem o nariz parecido com o de Ângela, volta à carga. "Eu também fui casado antes. Tenho dois filhos com a primeira mulher, que era tão linda quanto a Ângela, né, amor? Foi até miss."
Casa com elevador
Ox foi assassinado em 2002 por assaltantes que entraram na casa de três andares em que ele morava com Ângela, no Joá, zona oeste do Rio. "Fiquei muito traumatizada, passei dois anos sem namorar. Dei um beijinho aqui, outro ali, mas não saiu na mídia. Também não sou de ficar com muita gente. O Wagner é o meu quarto marido."
Com o primeiro, da época em que ela ainda morava em Cascadura, no subúrbio carioca, teve um filho. Criado pelo pai e a avó, o músico Igor Filgueiras, 29, diz que é vocalista de um projeto chamado Ghost Bit, que presta um tributo à banda norte-americana "The Doors". "É uma junção de MPB, jazz e poesia", explica ele, que foi prestigiar a mãe na formatura. Na escadaria da catedral, Igor conta que conviveu mais com Angelina, irmã de Ângela que se matou em 2012, quando a ex-destaque estava confinada no reality show "A Fazenda".
Arcanjo místico
O primeiro desfile de Ângela na Marquês de Sapucaí foi em 2000, pela escola Porto da Pedra, de São Gonçalo. O enredo homenageava os 500 anos do Brasil, e então tiveram a ideia de pintar o corpo dela com as cores da bandeira. A fantasia era isso. O carnavalesco Jaime Cesário, 53, autointitulado "o inventor da Ângela Bismarchi", lembra: "No dia, apareceu um delegado querendo prendê-la. Todo mundo tentando impedir, ela adorando. Foi notícia até no exterior."
Em 2015, em sua última aparição na avenida como rainha da bateria da Império Serrano, vestiram-na de "arcanjo místico". A ex-destaque diz que seu coração "não pede mais Carnaval". Restrospectivamente, ela se vê como "pecadora". "Você acha que sair pelada por aí é normal? Me comparo a Maria Madalena! A Bíblia diz que você não pode levar o teu irmãozinho a tropeçar. Se eu chego na igreja com um decotão, de minissaia, tu acha que o homem não vai olhar?"
As publicações que têm a Ângela-pecadora nua estão muito bem guardadas, diz Wagner: "Fazem parte da história dela, são um patrimônio!"
"As pessoas pensam que eu joguei tudo o que eu conquistei pela janela", acha a ex-destaque convertida. Ela afirma que, desde que recebeu o Espírito Santo, deixou de ganhar muito dinheiro com publicidade. "O Carnaval é um chamariz, né?"
Depende financeiramente do marido?
"Cada um tem o seu dinheiro. Levamos uma vida normal. Desde o começo da pandemia, eu me vejo obediente às leis de Deus. Não fui mais à praia. Tomo sol na piscina de casa."
Em defesa do 'kit covid'
Ângela conta que se precaveu antes de enfrentar a aglomeração da formatura: "Tomei ivermectina", diz ela, referindo-se ao medicamento sem eficácia comprovada contra o coronavírus. "Tomo desde o início, nunca tive nada. Conversa sobre isso com o meu marido, que é médico."
Wagner foi de cloroquina, igualmente descartada pela comunidade científica. "Todos os dias nascem três pessoas no Brasil, e morre uma. Alguém tem de morrer. Acontece que só se morre agora de covid-19. Ninguém mais morre de câncer, de Aids, de infarto, de AVC. Já reparou?"
Helen Somonton
Firmes em sua crença, Ângela e Wagner agora posam para fotos ao lado da estátua do missionário norte-americano Ashbel Green Simonton, fundador da igreja presbiteriana no Brasil, e da mulher dele, Helen Murdoch Simonton. Encantada, Ângela aponta para a figura em bronze de Helen e diz: "Linda a roupa dela!"
A tese que a ex-destaque defendeu no curso tem o título de "O Poder do Evangelho na Recuperação dos Desigrejados". Feliz por se sentir em condições de propagar seus conhecimentos teológicos, Ângela explica. "Agora sou professora. Posso ensinar os pastores a pregar, a levar a palavra do Evangelho às pessoas. Tem muitos aí que não têm ideia do que estão falando, sabia?"
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