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Paulo Sampaio

REPORTAGEM

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'Bruna Marquezine precisa de mim', diz cineasta Neville D'Almeida

O cineasta Neville D"Almeida estudou teatro também: "Sou ator, mas para suportar esses diretores medíocres, aí não quero." - Lucas Seixas/UOL
O cineasta Neville D'Almeida estudou teatro também: "Sou ator, mas para suportar esses diretores medíocres, aí não quero."
Imagem: Lucas Seixas/UOL

Colunista do TAB

10/04/2021 04h01

No próximo dia 15 de maio, quando completar 80 anos, o cineasta Neville D'Almeida gostaria de receber um telefonema de Bruna Marquezine. "Ela precisa de mim", diz.

Neville assegura que é capaz de transformar radicalmente a carreira da atriz. "Essa coisa de fazer novela o tempo todo atrapalha a vida do ator. Depois de filmar comigo, a Bruna Marquezine nunca mais será a mesma", garante. Ele tem um papel para ela no cinema...

Com mais de 60 anos de carreira, Neville D'Almeida alcançou a consagração comercial em 1978, com "A Dama do Lotação", baseado em um conto de Nelson Rodrigues. Sônia Braga faz Solange, uma mulher que se casou virgem e que é estuprada pelo marido na lua de mel. A partir de então, passa a fazer sexo com desconhecidos que aborda no transporte público. Visto por quase 10 milhões de pessoas, o filme foi uma das seis maiores bilheterias do cinema nacional de todos os tempos.

Em quase vinte longas-metragens, Neville dirigiu divas como Dina Sfat, Norma Bengell e Glauce Rocha. No lendário "Rio Babilônia", a protagonista era Christiane Torloni; em "Os Sete Gatinhos", Regina Casé; e "Navalha na Carne", Vera Fischer.

Sônia Braga, a Solange de "A Dama do Lotação" - Reprodução - Reprodução
Sônia Braga, a Solange de "A Dama do Lotação"
Imagem: Reprodução

Anti-Nélson Rodrigues

Agora, quarenta e dois anos depois de "Dama", ele quer Marquezine na adaptação de "Anti-Nélson Rodrigues", peça escrita pelo dramaturgo em 1973.

A sinopse: "Uma evangélica favelada, noiva de um rapaz da igreja, resiste ao assédio do dono da fábrica em que trabalha, até que ele oferece a ela um cheque de R$ 2 milhões. A moça se rende e os dois marcam um encontro, mas na hora H ela rasga o cheque em mil pedacinhos e diz: 'Seu idiota, burro, imbecil, eu não preciso disso. Eu te amo, sem o cheque!'"

"É um Nélson com final feliz!", comemora Neville.

A fantasia a respeito de Bruna Marquezine e do filme de Nelson Rodrigues acontece em uma conversa de quatro horas na casa de Neville. Ele mora na Gigoia, uma ilha de 130 mil metros quadrados localizada na Lagoa da Tijuca, à saída do túnel do Joá, zona oeste do Rio.

Homenageado pelo "conjunto da obra" no 7º Festival Brasil de Cinema Internacional, que se realiza entre os dias 5 e 13 de abril, Neville lembra que "a principal ferramenta de trabalho de um diretor é a liberdade".

"O que eu sinto, hoje, é que existe um cabresto ideológico. Os cineastas fingem que se importam com o povo, que são socialistas. Trazem alguém da comunidade para trabalhar na produção, incluem um negro na história, colocam um elemento do underground. Eles se sentem na obrigação de ter um ponto de vista social sobre coisas que não conhecem. O resultado é uma liberdade burguesinha, consumista, baseada em fatores pessoais. É tudo autorreferente, eu, eu, eu...A nova geração tem enormes problemas para se libertar de si."

Bruna Marquezine posa na mata de ilha deserta - Reprodução / Instagram - Reprodução / Instagram
A atriz Bruna Marquezine
Imagem: Reprodução / Instagram

Meia furada

Enquanto diz isso, Neville D'Almeida observa a própria imagem na câmera do celular instalado a sua frente por uma jovem assistente, a título de gravar a entrevista. "A vaidade é um veneno que eu evito. Sou uma pessoa muito simples", explica D'Almeida, falando direto para a câmera.

Ele recebeu a reportagem vestindo calça jeans, camisa de mangas compridas vermelha com estrelas brancas, jaqueta verde-limão e uma echarpe alaranjada, na qual passa boa parte do tempo se enrolando. Em determinado momento, cobre toda a cabeça. Nos pés, usa meias diferentes, uma delas furada. Ele levanta o pé e aponta o furo.

Profeta da Babilônia

O compromisso permanente com a transgressão soa vintage, algo remanescente do século passado. "'Rio Babilônia' é profético. Trata-se do único filme do cinema mundial que mostra como era o Rio de Janeiro na virada dos 70 para os 80."

(A história se desenrola em torno de um traficante internacional de ouro que volta ao Brasil depois de 20 anos morando fora. O enredo, meio caótico, mistura ricos e pobres, corrupção, droga, sexo; tem um famoso ménage à trois protagonizado por Pedrinho Aguinaga, Denise Dumont e Joel Barcelos.)

Christiane Torloni interpreta uma jornalista que denuncia o esquema do traficante. "O filme apresenta um retrato moral da sociedade que não pertence apenas a uma época. Você abre o jornal hoje e vê, em tempos de pandemia, festas inacreditáveis. Na Amazônia, nunca se invadiu tanto, se matou tanto, se grilou tanto. O Brasil mudou? A saúde tá legal? A educação? A segurança?", questiona a atriz.

Christiane Torloni e Joel Barcellos, em Rio Babilônia - Reprodução - Reprodução
Christiane Torloni e Joel Barcellos, em Rio Babilônia
Imagem: Reprodução

Protestante reformista

Nascido em Belo Horizonte, Neville D'Almeida foi criado de acordo com os fundamentos da Igreja Metodista. Definindo-se como protestante reformista, ele diz que a religião teve importância crucial em sua formação, e isso inclui o interesse precoce pelo teatro e o cinema. "Aos 12 anos, eu lia a Bíblia. Não folheando, mas estudando. É importante dizer que não sou evangélico, não apoio esses pastores ambiciosos que vivem atrás de dinheiro."

Depois de estudar arte dramática em BH, foi para Nova York e se matriculou em um curso de cinema que o frustrou por "ficar só no que era feito nos Estados Unidos". De volta ao Brasil, entrou em contato com vanguardistas como o músico Jorge Mautner e o artista plástico Helio Oiticica, com quem criou a instalação "Cosmococas", de arte audiovisual interativa. Em 1966, dirigiu seu primeiro longa-metragem, "O Bem-Aventurado".

Caminho autoral

Apesar da admiração pela "turma do Cinema Novo", pelos expoentes da Nouvelle Vague e do Neorrealismo italiano, D'Almeida diz que não considera nenhum deles uma referência. "Segui um caminho autoral. Olho para os lados e vejo que ninguém nunca fez algo parecido. Não quer dizer que eu seja o maioral. Apenas que existe um conceito, um estilo próprio."

A segurança aparentemente inabalável tem origem em uma autoestima turbinada. Quando citam o incensado cineasta espanhol Pedro Almodóvar, por exemplo, D'Almeida reage altivo: "Neville veio antes de Almodóvar. Quando ele chamou o Caetano para cantar no filme ("Fale com Ela", de 2002), o Caetano já tinha feito a trilha de 'Dama do Lotação' havia quase 15 anos."

Sobre atriz australiana Cate Blanchett, ganhadora de dois Oscar e unanimidade de crítica e público, ele solta um suspiro: "Eu não dou muita importância a essas atrizes cafonas do cinema internacional".

No deck de sua casa, à beira da Lagoa da Tijuca; camisa de estrelas, echarpe laranja e meia furada - Lucas Seixas - Lucas Seixas
No deck de sua casa, à beira da Lagoa da Tijuca; camisa de estrelas, echarpe laranja e meia furada
Imagem: Lucas Seixas

Método Exclusivo

Neville D'Almeida diz que, ao filmar, utiliza um "método muito exclusivo". "A primeira pergunta que faço a um ator é: 'Você está preparado para viver intensamente esse papel?'"

Por conta disso, ele diz que já dispensou muita gente. Prefere não citar nomes. "Quando o ator fica em dúvida, se mostra amedrontado, inseguro, é sinal de que não será capaz de atingir a profundidade necessária."

Christiane Torloni tenta puxar na memória. "O filme tem quase 40 anos, eu não me lembro desse approach, mas não existe papel a que eu não tenha me proposto a viver intensamente."

Por meio de uma fonte da coluna, Sônia Braga disse que está concentrada em um novo projeto e preferiu não se manifestar.

A figurinista Marília Carneiro, que vestiu Sônia em "Dama", tem ótimas recordações das filmagens ("Ela estava no auge da juventude, vestiu divinamente as roupas"), mas conta que D'Almeida no set era muito severo. "Ele me inspirava um sentimento maior que respeito, próximo do medo. Eu o achava inacessível, ele só se dirigia a um pequeno grupo de pessoas. Cinco anos depois, passou a me chamar de 'minha figurinista', o que me encheu de orgulho."

Marília conta que Gilberto Braga pediu a ela que se inspirasse no figurino do filme para vestir Sonia Braga em "Dancin' Days".

A primeira pergunta que Neville faz a um ator é: "Você está preparado para viver intensamente esse papel?" - Lucas Seixas/UOL - Lucas Seixas/UOL
A primeira pergunta que Neville faz a um ator é: "Você está preparado para viver intensamente esse papel?"
Imagem: Lucas Seixas/UOL

Cenas de sexo

Categórico, Neville D'Almeida afirma que "ninguém sabe dirigir sexo". Ele explica como faz para obter um bom resultado.

"Uso a indução suave, silenciosa, espiritual. A estrela vai esquecer o ego naquele momento. Ela compreende que não importa o tamanho da fama ou a quantidade de dinheiro que possui; o que eu tenho para oferecer vale muito mais: verdade, capacidade, talento, sensibilidade."

Ele adianta que Bruna Marquezine será induzida suave e silenciosamente em "Anti-Nélson Rodrigues" — mas relativiza: "É preciso enxergar as cenas de sexo de uma maneira ampla. Trata-se de uma dramatização artística do ato sexual. Nada explícito. São sequências que a Bruna, com seu talento extraordinário, fará muito bem."

Segundo ele, a personagem de Marquezine (Joice) "não precisa ficar pelada". "Se houver entendimento nesse sentido, ela pode, por exemplo, em uma cena em que chega à favela cansada, tirar a roupa e tomar um banho no chuveiro do barraco. Olha que cena maravilhosa!"

A assessora de Bruna Marquezine ficou de consultá-la "para ver se ela conhece o trabalho dele (Neville)". Até o fechamento deste texto, não disse mais nada.

Ninfomaníacas do Tinder

Em "A Dama da Internet", outro projeto embrionário do cineasta, a personagem da lotação é transportada para o século 21. Ele escalaria Juliana Paes para o papel (procurada, a assessoria da atriz não respondeu à mensagem).

"Na história, as mulheres dão o troco de mais de 5 mil anos de dominação masculina. Elas submetem os homens às piores humilhações, ofensas, opressões e espezinhamentos. Coloca-os em seus devidos lugares: na lata de lixo."

Ele diz que a dama do século 21 não frequenta aplicativos. "O Tinder revela hoje as ninfomaníacas de ontem. Aquilo é horrível. Só mentira. A mulher põe lá uma foto de 15 anos atrás, aí você encontra ao vivo, é um bagulho. O homem aparece sorridente, e na vida real é um rancoroso, escroto, um merda. Um perigo."

(Neville diz que nunca frequentou o Tinder, mas, como produtor cultural, sabe de "tudo").

Antigo Testamento

Sem deixar de reconhecer o caráter positivo das redes sociais — enquanto ferramenta de comunicação rápida —, ele lamenta o uso delas para promover a deseducação do povo.

"Caímos em uma armadilha, estamos sendo controlados por um sistema apavorante. O aparecimento desse personagem (Jair Bolsonaro) é fruto da desinformação disseminada em proporção exponencial. A gente vive o momento mais dramático desse desgoverno. Contra a cultura, a liberdade, a ciência, o progresso..."

Citando sua formação protestante, Neville D'Almeida calcula que estamos atrasados mais de dois mil anos. "Ainda vivemos no Antigo Testamento, no tempo do olho por olho, do adultério, do poder, da corrupção. A revolução do amor e do perdão, proposta por Jesus Cristo, ainda não aconteceu."