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Trombadas

As descrenças de Silvio Roberto

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

08/04/2021 04h01

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Eu não acredito em Deus. Nem no amor. Muito menos em depressão. Como não acredito em nada? Eu acredito no homem, porra. É como eu falo pra menina que distribui meus panfletos aí no Arouche e na República. "Ah, seu Silvio, será que vai dar certo?" Minha filha, quem tem dúvida de vencer já está vencido.

Esse meu ramo de consertar coisas é um campo de desafios, cê tá entendendo? Tem muito treco que aparece aqui e eu não tenho a menor noção do que se trata. Há pouco tempo peguei um aspirador da marca Karcher. Da Alemanha. Poxa, os caras são bons. Uns subversivos. Revirei o aparelho inteiro e não achava os parafusos pra abrir. Que que é isso?! Não pode! Tem uns que vão olhar e dizer: "Desculpa, madame, com esse tipo de equipamento a gente não trabalha". Eu não. Eu olhei e falei: "Isso aí é um desafio". Passei duas horas revirando e não achei. Botei de lado pra pensar: esse motor não foi embalado aí, tem que ter como abrir. O aspirador de canto e uma semana eu só olhando pra ele. Fui nas rodinhas. Quando tirei a primeira, ela ocultava um duto. E no fundo desse duto, pá!, o parafuso. A chave de fenda nem alcançava, tive que fabricar uma ferramenta específica.

No fim o defeito era simples, como tudo que vem pro conserto. Porque vou te dizer um negócio. Invenção mesmo foi a do Thomas Edison. De lá pra cá não passa de continuidade. Computador, celular, televisão, geladeira, essas coisas que vão na tomada você abre e dentro é tudo igual. Depois do Edison? Olha, depois do Edison tudo é fio, meu chapa. A turma fala de Jobs, Gates... Eu não acredito em Steve Jobs nem em Bill Gates. Eu acredito no Edison. Esse matou a cobra e mostrou a cobra morta. Que mostrar o pau é mole, tá certo?

Veja esse caso aqui. O chamado galheteiro. Pra pôr azeite e vinagre. Uma senhora de Higienópolis que trouxe. Cliente antiga. Para de chofer aí na frente. Como as borrachas estavam ressecadas, os vidrinhos vazavam. Tão somente pus um retentor e ficaram bons outra vez. Aí você me pergunta, "Silvio, pra que consertar isso? Não é mais fácil jogar fora e comprar novo?" Sabe o que é? Gente antiga se apega. No fim da vida, qualquer coisa que você descarta é um pedaço de você que se vai. Momentos que você viveu, as lembranças, as amizades estão dentro dos objetos. Então, não é só uma questão de praticidade ou de dinheiro. É a vida delas. Tem gente que me traz radinho de pilha de 50 anos pra consertar. Sinto um prazer enorme de fazer funcionar de novo, de romper com o pensamento do quebrou-joga-fora-compra-novo. Os caras querem que a gente viva assim, anestesiado, adormecido, com preguiça de pensar e levando tudo no automático. Quem pensa, conserta. Quem sente, também. Por isso me faz feliz consertar. Medalha no peito. Fico diferente dos outros, importante, sabido. O "não tem jeito" não cabe em mim. Nunca coube.

De molecão fui expulso da igreja porque perturbava demais o padre. Ele vinha com conversinha de milagre, pecado, Deus castiga, aquele negócio todo. Mas eu tinha perguntas. Enchia o padre de perguntas. Ele: "Porra, esse neguinho me enche o saco". Ele começou a não me dar resposta e eu percebi que fazer pergunta é um perigo. Em uma semana eu tinha decorado o catecismo todo, feito a primeira comunhão e pulado fora. Deus. Mané Deus, porra. A turma vem com esse papinho de que tem que existir algo superior. Existe: o homem. O camarada que levanta seus 80 quilos da cama toda manhã pra encarar seus compromissos é o todo-poderoso.

A vida não é complicada, nós que complicamos. Se eu for sair e olhar pro céu, estiver meio cinza? "Ih, rapaz, vai chover, melhor eu ficar". Pronto, compliquei minha vida. No fim nem choveu, não saí e perdi o dia. Então prefiro sair de uma vez, ir pras cabeças. Se chover eu improviso no caminho. Mesmo assim, não posso dizer que sou completamente feliz. Faltando dinheiro fica difícil. Nunca tive mais do que tenho agora, sempre fui assim, desse patamar. Mas já fui empregado. Consertava as máquinas de escrever nos escritórios da Porto Seguro. Era bom ter salário, porque esse negócio de correr atrás, correr atrás, correr atrás é que cansa a gente. Mas tudo bem. Podia ser mais difícil. Veja a vida do meu irmão, que perdeu um filho lindo de 19 anos. Garoto trabalhador, bondoso. Trampava como ele dirigindo ônibus fretado. Uma dia estava na garagem dando um trato no ônibus. Não sei por que o bichão começou a descer. Meu sobrinho correu pra entrar e puxar o freio de mão, só que não deu tempo. Foi prensado no muro. Olha, uma tristeza que você não pode imaginar. Faz sete anos e ninguém se recuperou.

É horrível quando as pessoas morrem assim, do nada. Eu quero morrer sabendo que estou morrendo, porque aí posso me programar. Vou ficar só na vontade? Cê tá louco? Vamos dizer que eu ganho uma menina bonita no baile. Preciso de um plano pros dias posteriores, pra não morrer no prejuízo, é ou não é? Já pensou se morro de repente? Quando eu digo isso, a turma fala que morrer sabendo só se for de doença e que aí o sofrimento é pior. Faz parte.

A vida inteira a gente sofre. Uma sofrência a mais, outra a menos... Além do quê, não acredito em doença. O que dá doença é remédio. Já leu bula de analgésico? Os efeitos colaterais são piores do que a dor de cabeça. Nunca tomei remédio pra nada. Eu não acredito em remédio. Acredito na física. Fui pugilista amador e aos 67 anos ainda faço minha sombrinha três vezes por semana. Tô inteiro.

Triste não fico. Acho que pobre não tem tempo pra tristeza, depressão, essas coisas. Vai na favela e vê se tem gente deprimida lá. E olha que motivo não falta. Mas não dá tempo. Agora, ressentimento eu sinto. Vou te dizer por quê. Toda hora tem dessas. Tocam a campainha, vou atender.

-- O senhor que conserta celular?
-- Eu mesmo.
-- Ah, tá bom. Estava passando e vi o luminoso na entrada. Volto depois.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Vira as costas e vai embora. Sabe o motivo, não é? Porque vê um crioulo. Se visse um japonês, um turco, um branco qualquer, deixava o celular pra fazer orçamento. Ser negro no Brasil é isso. Quem não é nunca vai entender. Todo dia um olhar, um não, um descrédito, uma desconfiança. É o tempo todo tendo que provar que é capaz, que não é ladrão, que é do bem. Ter que desarmar o preconceito antes de começar a fazer o um trabalho me dá raiva. Um duplo sacrifício que os brancos não enfrentam.

Meu pai nasceu no Suriname e veio menino pro Brasil. Cursou Aman, foi oficial da Aeronáutica. Ele saía de casa fardado e achavam que ele era da PM. Aí dizem que não somos um país racista. Aqui, ó. Nesse ponto até prefiro os Estados Unidos, cê tá entendendo? Lá pelo menos não fingem. Mas agora é tarde pra mudar, nunca vão permitir. Porque os brancos temem que os negros se vinguem. Igual na África do Sul. O Mandela foi um joguete dos brancos. "Irmão, vamos te soltar pra você controlar a negraiada." Eu não acredito no Mandela.

Mas, meu querido, não leva a mal. Vamos terminando... Vou pra casa, no Cambuci. Não fosse o vírus maldito, eu iria pro baile. No vírus eu acredito, que não sou idiota. Mas adoro um baile. Ali eu sou o cara. Samba-rock, gafieira, Village People. Rapaz, é comigo mesmo. O baile é a alegria da alma. A turma toda numa energia só querendo ser feliz. Tá mal? Vai pro baile, é o que eu digo. Dançar, beber um pouquinho, dar uns sorrisos. Clube Piratininga, Homs, Esportivo da Penha. Pena que o Avenida de Pinheiros fechou. Já levantei muito marmanjo que chegou no baile depois de acabar o casamento e saiu outro de lá. E no baile tem uma moças de cigarrilha que se amarram num negão, cê tá entendendo? Só eu que não me amarro. Tenho dois filhos oficiais e uns quatro ou cinco por aí. Mas nunca me casei. Veja bem, o que acontece com o amor? Discuto muito isso com as mulheres. Amar, pra mim, é você se dar sem nada receber. Mas as pessoas cobram, vira troca de exigências. "Só te amo se você me amar." Como acreditar no amor? Só vou acreditar quando eu disser pra uma garota que não a amo e ela responder: "Não tem problema, Bé, o meu amor dá pra nós dois".

Mas é difícil se relacionar com alguém quando você é assim como eu, meio descrente, digamos. Porque se eu só acredito no que vejo, as pessoas do meu lado estão a toda hora sendo testadas. E na prova dos nove do Silvio Roberto é difícil passar. Muita exigência, eu sei. Mas prefiro exigir do que fingir.

Então, esse negócio que a turma sente aí, de ficar sem dormir, sem comer, ouvindo passarinho e achando linda a borboleta, a joaninha, a graminha, isso aí que chamam de amor eu nunca senti, não. Eu não acredito no amor. Acredito no tesão.

Falamos disso outro dia. Tchau.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Silvio Roberto Matté, 67 anos

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.