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Trombadas

As palavras bonitas de Fiinho

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

22/04/2021 04h01

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O sol fraco tinha saído de novo depois da chuva e iluminava as aroeiras e os guapuruvus no alto do morro, do outro lado do vale. Hora de Fiinho, o caseiro, partir. Era sempre uma despedida longa, que ele começava tirando o boné antes de pisar na escadinha do alpendre, para depois fungar o ar e dizer: "O cheirim do café tá bão". Fiinho repassava os planos de trabalho para a manhã seguinte com Mario, dono da propriedade, os dois salpicavam sal nas fileiras das danadas formigas-correição e, se alguém desse corda, uma conversa de histórias e palavras bonitas ia longe.

Fiinho vinha ora de Uno Mille, ora de Garoto, um pangaré caramelo que ele enchia de carícias e trançava os pelos da crina. Sempre com ele, ou melhor, atrás dele, o cachorro Lobo, grande, atento, doce. Um dia apareceu a Preta, mulher do Fiinho. Se conheceram num rodeio. Ele tomando cerveja, ela montando em boi brabo. Nessa tarde, enquanto Lobo buscava carinho e pedaços de pão velho e Fiinho tomava o café, eu puxei conversa:

— Conhece São Paulo, Fiinho?

— Não sinhô. Daqui mais longe fui em São José dos Campos e não passei.

— Gostou de lá?

— Ara, muita pressa, né? As pessoa corre demais. Sua de noite, tanto que corre.

— Verdade. A calma no sítio é melhor.

— Mió e pió também.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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— Por que pior?

-- Causa de que é tão calmo que vai todo mundo embora. Rapaizim assim igual o seu, chega nesse tamanho de idade não quer saber do serviço. Só pensa em fazê outras coisa, vivê outras vida. Difíci ter ajudante pra batê uma cerca, arar um terrenim. Difíci. Pode prucurá de vela acesa que não acha. Acabo trabaiando sozim. Meu menino mesm, o Geraldo, quer estudar pra delegado. Logo vai embora. Nem arapuca faz. E eu passava o dia fazendo arapuca com o vô, sinhô imagina. Umas grande assim, pra saracura. Hoje em dia nem não se come mais passarim. Mas sinhô sabe que tem que sevá, né? Armar a arapuca antes de sevá uns trêis, quatro dia não resorve de nada.

-- E você nasceu aqui mesmo Fiinho, em Soledade, Minas Gerais?

— Nascido e criado. Nascido Wesley Sebastião Rodrigues Taveira, fi de Tonico e Maria Cleuza, chamado Fiim e trabaiado nesses morro tudo.

— Que tipo de trabalho você faz?

— Trabai de roça mes: a gente planta, cói, mata uns leitãozim, faz parto de criação, mocha bezerro.

— O que é isso?

— Mochá, uai. Descorná. Rancá fora os chifre das vaca. Nunca não viu, não?

— E pra que serve?

— Pra elas ficá mais calma, não se ferir. E pra dar mais leite também.

— É a coisa mais difícil que você já fez?

— Não sinhô.

— Qual foi a mais difícil?

— Tirá carteira de motorista em Caxambu. Fiz quatro veiz a prova escrita. Li e reli o livro inteirim. Sabia as resposta, até as propaganda eu alembrava, mas quem disse que entendia as pergunta. Eles usa u'as palavra ruim demais. "Exceto." Nunca tinha visto. Achava que era "é certo", diferente de "é errado". "Bifurcação." Ara, isso nóis conhece por gaio. No gaio o caminho abre pras esquerda e pras direita. É um gaio. Mas na quinta veiz passei. Falei que eles não podia mais não me dá a carteira só porque eu não entendia as pergunta. Porque as resposta eu sabia. Eles que me botasse a mocinha do lado pra ajudar. Precisava 21 ponto, fiz 28. Aí ficô chique.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

— Passei na frente do seu sítio hoje cedo.

— E não entrou pra tomar um café, comê u'a broa, um bolo de mi?

— Passei de carro, volto outra hora. Mas achei bonito o nome, Sítio Lobo Solitário.

— A Preta, ela que inventa essas coisa. Na varanda tem um lobo de pedra, sinhô viu? Ela pintou todim de preto, só a língua vermeia.

— Eu vi. Dá medo até. É pra espantar ladrão?

— Aqui tem disso não. A lá a Preta vino. Tava onde, Preta?

— No enterro dum homi em Baependi.

— Que homi?

— Não sei. U'a amiga de São Lourenço me chamou e eu fui fazê companhia. Mas foi bão não.

— E por quê?

— Era na parte das famia rica, sabe? Eu era a única estranha, ninguém me conhecia, ficaro me oiando, achando que eu podia ser uma bastardinha do morto. Pra piorar, distraí cu'a estátua, que tem muita estátua nessa parte do cemitério, nossinhora, e caí na cova aberta.

— Preta!

— Ninguém não riu, tavam bem triste mes.

— O sinhô leva em consideração não as coisa que a Preta fala. Ela sorta tudo da cabeça pra boca sem peneirar.

— Eu sorto mes. Que nem no dia que a pequeninha nasceu, alembra, Fiim? Tive uns probleminha, sabe?, e o leite empedrou. Veio a enfermeira me buscar: "Preta, vou te levar pra ordenha." Que ordenha o quê? Eu não sou vaca! Tive que dar uns tapa na muié, onde é que já se viu u'ma coisa dessa. Depois chamaro o Fiim pra falar com a psicóloga.

— O que ela te disse, Fiinho?

— Pra eu ter paciência com a Preta, que era normal ficar nervosa depois do parto. Mas como a Preta também reclamou de mim, que eu não deixava ela criar galinha, a médica achou mió eu fazê um galinheirozim.

— E agora nóis cria galinha, né, Fiim?

— É.

— Agora que já tenho galinha vou querer uma motinha.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

— E você sabe andar de moto, Preta?

— Aprendo, uai. Eu queria ter uma grande dessas Harnekens, de filme que aparece na televisão. Mas me contento com u'ma Suzukinha.

— Preta?

— Fiinho, o que tem de serviço pra amanhã?

— Pra amanhã o seu Mario quer trocar os pé do banco da varanda. Fica no tempo e apodreceu. Vou procurar um eucalipto vermei caído ou pra cortá. Pra essas coisa tem que ser eucalipto vermei. Pau muito bão. E se cortá em dia de lua boa e mês que não tem R não apodrece nunca mais.

— Mas é janeiro, Fiinho. Janeiro tem R.

— Vô tê que falá co' seu Mario.

— Vamos fazer uma fotografia, Fiinho?

— Minha?

— Sim, sua.

— Tá bão. Onde é que eu fico?

— Pode ser aqui na frente das samambaias.

— Ah, elas tão bonitas mes.

— Mas como é uma câmera antiga não dá ver na hora igual no celular. Eu vou precisar voltar outro dia pra te trazer a foto.

— Tem problema não. Eu espero. Deus abençoe.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Wesley Sebastião Rodrigues Taveira, o Fiinho, 41 anos


Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro -- é fundamental parar -- e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.