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Trombadas

As barbadas de Preguinho

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

15/07/2021 04h01

Por esses dias agorinha eu tô é pensando. Nada. Sozinho mesmo. Acho que é por causa que tô pra aposentar. Entrei com o pedido, que tá passado já. Aí penso nas mudança, nas diferença, nas coisa tudo. Por exemplo, aquele dia que teve a final do campeonato. Eu tava vendo na TV com os cabra da cocheira e eles falaro assim: "esse Felipe Melo é um cavalo". Sabe o Felipe Melo, né?, jogador do Palmeiras. Aí peguei no pensamento e fui, fui, fui, que perdi o resto do jogo. Pensando no Felipe Melo e nos cavalo que a gente cuida aqui no Jockey. Comparando. As minha conclusão é que são diferente um do outro. Nada de igual. Porque o Felipe Melo pensa. Os bicho faz por natureza. Eles pisa na gente, chuta, rebenta o cabresto, dá cabeçada, morde, ôxe!, o que já levei de mordida desses puro-sangue aí! Mas, coitado, eles não sabe agir de outro modo. Antigamente, quando comecei nesse serviço de cavalariço, eu achava que tinha cavalo maldoso. Tem não. É natureza só. Quem tem maldade com intenção é o jegue. Esse faz de caso pensado. Aqueles zóio manso só engana.

Sou de Riachão do Jacuípe. Fica na Bahia, perto de Feira de Santana. Lá o pai fazia teiado, cerca, curral, nóis ajudava ele e também trabaiava em plantação. Rodando tudo aqueles lado pra destocar mato e plantar feijão fui mais longe até Irecê, no norte, e pra colher cacau em Ilhéus, no sul. Nessa época faltava comida sim. Comi pouco muitos dia, de o corpo sentir meio fracassado. Meu apelido Preguinho vem desses tempo, sempre fui muito pequeno. As tia falava "vem cá, meu prego, meu preguinho". O que mais eu alembro da infância? Que era mais solto. Trabaiava pesado igual, mas agora parece que a gente fica mais preso que antes. Habito aqui mesmo, no alojamento da cocheira. Tem férias, só que a gente emenda. Tem um dia de folga, só que é difícil sair. Se saio, vamos dizer, vou no forró encontrar meus cambalacho, aí preciso planejar bem direitinho pra voltar cedo, porque o serviço no Jockey começa primeiro de que o sol. Tem que ter responsabilidade pra ser cavalariço.

Eu levanto às quatro e meia, vinte das pra cinco. Cuido de cinco cavalo. Pra cada um, eu primeiro ponho no cabresto, depois limpo a cama, troco a água, tiro os resto e lavo o cocho pra não fazer limo. Aí escovo um por um e subo com eles pra pista. Um de cada vez. Às seis horas, todos os cinco têm que estar lá com os treinador. Quando dá umas nove, vou buscar. Enxugo o suor todinho deles, senão assa, ponho na cama limpa, dou água, pasto, escovo de novo e fecho. Aí vou tomar café. À tarde os bicho não trabaia, então só repete a parte da limpeza da cama e da escova. Todo dia assim desde 1981, quando cheguei em São Paulo e um compadre me arrumou esse serviço.

Gosto, ôxe! Tirei diploma. Não diploma de letra. Diploma de conhecimento de cavalo. Precisa aprender tudo do animal pra poder mexer com ele. As partes. Oreia, mão, os pé. Isso todo mundo sabe, mas tem coxa, pescoço, garupa, cauda, covilhão, boleto, costela. O machinho, você sabe onde fica o machinho? É aquela parte mole debaixo do casco. E garrotijo? Sabe o que é garrotijo? É o catarro que forma no nariz se ele fica resfriado. Por isso não pode dar muito banho, mais em dia de páreo só, depois que ele corre e volta todo sujo de grama e lama. Aí dá banho e seca bem sequinho pra não pegar garrotijo. Vou te fazer outra pergunta pra ver se você sabe: entre cavalo e égua, qual é mais fácil de cuidar? Não. É o cavalo. Porque na égua a gente não pode passar demais a raspadeira de ferro. Precisa ser uma de borracha, que não limpa tão bem e aí demora mais. Precisa ir de leve, maneirar. Se você usa muito a raspadeira de ferro na égua ela dá no cio. No cavalo não tem isso. E se ela dá no cio não consegue ganhar o páreo de jeito nenhum. Encascaia e não tem quem tira.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ano passado venci oito corrida. Esse ano já vou com três. Como jóquei não, vixe maria! Quando falo que venci quer dizer que o animal da minha escova ganhou o páreo. Assim, vamos dizer que um deles vai correr amanhã. Eu confiro o nome dele, o nome do criador, do treinador e o nome do jóquei, tá tudo na ficha. Não, meu nome não vai, porque aí é cavalariço, não precisa. O bicho sai escovado e brilhoso da cocheira. A escova acalma ele. E tem que ser comigo porque ele me conhece, tô com ele todo dia.

Eu escovo, ele fica relaxado, com os músculo solto pra correr. É a parte do serviço que eu mais gosto. Enquanto escovo o bicho pro páreo tô pensando só em coisa boa, pedindo pra dar tudo certo e pra que eu possa continuar fazendo esse trabaio no outro dia. Às vezes penso nas estatística também, pra ver se levanto uns trocado. Já ganhei um pouquinho, deu pra fazer umas prestação pra família. Mas jóquei nunca quis ser, não. Esses cara se estrepa demais. Tem vários aí arrebentado, osso quebrado. Os mais esperto faz um pé de meia e para cedo.

Sabe o que é? Esse cavalo puro-sangue inglês é doido. Foi feito pra correr, nada mais. Não é cavalo de trabaio no campo ou de passeio. O nervosismo é dele de nascimento. Às vezes ele tá calmo, parado, mas vê lá longe uma parelha treinando, pronto, quer ir atrás e dispara. É um alvoroço só. Você puxa, puxa, puxa, quanto mais puxa, mais a boca do bicho esquenta, mais ele corre e ninguém consegue fazer parar, pode esquecer. Primeiro acaba sua força dos braço, depois a das perna. O que faz? Reza pro bicho cansar e parar, único jeito. E pra ele correr só na pista. Porque pode acontecer de ele disparar sem montaria e aí é feio. Já vi cavalo desembestado pular a cerca pra fora da pista e se arrebentar na parede. Ele não para, tô dizendo que é doido. Quando isso acontece e precisa sacrificar o animal, acaba com a gente. Uma tristeza muito grande que demora pra sair de dentro.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Eu galopei já com esses cavalo aí. Ôxe, bom demais. Depois fiquei velho e pensei: deixa pros mais novo fazer força. Dia 19 de abril inteirei 61, dá mais pra isso, não. Uma vez aconteceu de o bicho disparar comigo montado. Tinha disparado já mais cedo com Zé Miúdo. Aí disparou comigo também. Rapaz, pensei comigo, quando chegar na balança eu vou pular. Nem deu tempo. A égua do Cajueiro atravessou na frente e foi aquela cacetada. Caí como daqui naquele ferro lá adiante. Levantei, bati as poeira e vortei pra cocheira. Quando foi de tarde eu não aguentava nem ir no banheiro, só da dor tamanha. O impacto foi forte. O cavalo ficou uns cinco minuto fora de si, mas machucou não, graças a Deus.

Dou desconto pra queda porque o sentimento que eu sentia antes tava muito bom. O bicho na curva ele mesmo trocava de mão, nem precisava fazer nada, era só deixar o corpo acompanhar e ir embora, o vento gostoso na cara. Nessa hora até lembrei do Canarinho, nosso cavalo lá em Riachão do Jacuípe. Era um alazão com a testa, as mão e os pé branco. Mansinho. A gente ia na venda, nos lugar tudinho, deixava ele na porta e nem precisava amarrar. Viveu um bocado e faleceu de velho. Montei muito nele.

Acho que porque era criança pequena, e criança pequena é mais liberta, sem preocupação, é que penso bastante no Canarinho também. Ser livre hoje? Bom, eu acho que ser livre hoje era aposentar e, sabe o quê?, abrir um forró. Salãozinho pequeno, pra poucas pessoa, sem formar fila na porta. Eu ia dançar a noite todinha sem tem que pagar e sem preocupar de voltar pra trabaiá. O Forró do Preguinho. Ôxe que ia ficar gostoso, hein!

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Adalício de Jesus Santana, o Preguinho, 61 anos

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.