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Trombadas

A tabuada de Eliani

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

07/10/2021 04h01

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Menino, estou aposentada! Assim, de um dia pro outro! Gente! Não, não está sendo fácil, não. A gente se prepara, faz isso, pensa aquilo, arruma aqui, ajeita ali, e na hora H não serviu de nada. Sente só um vazio. Trinta e um anos e quatro meses de magistério público municipal em São Paulo. Trinta e um anos e quatro meses, você acredita?! Aí dei aula na segunda, dei aula na terça e, na quarta-feira de manhã estou lavando louça em casa, toca o telefone. Era o Roy, secretário da escola.

-- Saiu, professora.
-- Quem saiu, Roy?
-- Sua aposentadoria.
-- Como é? Fale devagar, por favor, que não estou entendendo.
-- Professora Eliani Andrade, a senhora está aposentada. Parabéns.

Eu quase caí dura. Desliguei o telefone e fiquei igual barata tonta. Meu deus, o que eu faço? Ia da cozinha pra sala, da sala pro quarto, voltava pra cozinha. Perdidinha, pra lá e pra cá dentro do apartamento. Liguei pro Finado, que é como eu chamo meu ex-marido.

-- E agora?
-- Agora você não vai mais, ué.

Como não vai mais? Imagina! Eu tenho que falar com meus alunos. Não posso simplesmente desaparecer. Eu já vinha conversando com eles, contei que tinha entrado com o pedido de aposentadoria, mas imaginava que ficaríamos juntos até o final do ano, pelo menos. Não dava pra sumir assim de repente. Então eu me arrumei, tomei fôlego e fui pra escola. Cheguei e, sem me dar conta, ainda quis assinar o ponto, veja você.

TAB Trombadas - A professora Eliane Andrade - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Desses 31 anos e 4 meses, 28 anos foram como professora de alfabetização de adultos. E te digo com segurança: mais aprendi do que ensinei. É um público que a gente chama de alta vulnerabilidade: pessoas que não tiveram acesso à educação formal na infância. Na maioria, migrantes, trabalhadores rurais que caem nessa cidade dos signos que é São Paulo e, sem conseguir ler um nome de rua, se tornam quase cegos. Brasil em estado puro. Olha, as pessoas não fazem ideia: o fosso aberto pela falta de oportunidade de estudar na idade correta é muito profundo. Quase sem fundo, eu diria. A gente sabe que a maioria desses estudantes não vai continuar no ensino médio, entrar numa faculdade, nada disso. As limitações impostas a eles são grandes e quase permanentes. Mas existe uma transformação possível que a gente deve considerar: quando os ajudamos a ler e escrever, os ajudamos a levantar a cabeça. É disso que se trata. Porque o adulto não alfabetizado chega à escola olhando pro chão, com vergonha, culpa total, mal fala, só balbucia. Deixa eu te dizer uma coisa: o adulto não alfabetizado é a definição mais clara que eu conheço de humilhado, ofendido e explorado. Pois é. Então, nosso trabalho de educador, do qual me orgulho demais, mas com certa tristeza porque me aposento com a sensação de não ter feito o suficiente, é tirar essas pessoas da escuridão.

Difícil? É luta. Luta diária. Quando comecei na Educação de Jovens e Adultos, em 1993, a gente fazia panfletos e levava nos supermercados, nos açougues, nas igrejas, nas lojas de roupa do bairro, pedindo que os patrões, os gerentes, que o padre falasse na missa, enfim, que conversassem com as pessoas sobre a oportunidade de estudar, superar a vergonha e ir ao menos tentar. Nós mesmos, os professores, fazíamos isso. Claro que fazíamos! E com satisfação. Pra mim, ser professora é isso. Não é pegar a bolsa no fim do dia, apagar a luz e ir embora. Tem um trabalho que eu diria missionário também, não é? Eu nem acredito em educação que não seja assim, se você quer saber. E não estou me vangloriando de nada, não tem vaidade nenhuma aí. Porque isso é o normal. Ser educador é assim. Tem que ser assim. Precisa ter consciência do impacto que a gente exerce sobre as pessoas e a comunidade. Um bom professor transforma a vida do aluno. E um ruim também.

Na alfabetização de adultos a gente lida, quer dizer, eu lidava, né?, ai meu deus, preciso me acostumar com o tempo verbal no passado agora, eu lidava com pessoas que lutam pra sobreviver. Gente que apanhou tanto da vida que não consegue mais acreditar que pode ser ouvida, compreendida, acolhida. É transformador pra gente. Ouvindo, você entende de onde vem tanta agressividade, tanta desesperança, tanta aceitação da própria miséria. Claro, só levaram bordoada! Então, o trabalho do professor ali consiste em olhar nos olhos do aluno com sinceridade, com vontade de entender as dificuldades dele, as aflições, ouvir, valorizar as vivências particulares de cada um. É a partir disso que a gente trabalha. Não dá pra desprezar nada. Isso mesmo, Paulo Freire, você conhece.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Por exemplo, é pegar uma toalha de crochê feita por uma aluna e dizer "está vendo, você sabe matemática, porque pra fazer a toalha neste formato você usou tantos pontos aqui mais tantos pontos ali". Eu sempre pedia que meus alunos contassem alguma história pessoal deles, uma alegria que tiveram, qualquer coisa. Aí tomava nota, escrevia uma por uma e dias depois lia pra classe toda. Parece nada, não é? Pra quem nunca foi ouvido é tudo. Muitos dos meus alunos eram pessoas trans. Às vezes elas vinham para aula direto do programa e era isso o que tinham pra contar. Como a gente faz? Ouve. O acolhimento é a base da educação de adultos. Eu preciso convencer o aluno de que não estou ali pra explorá-lo e censurá-lo, como fizeram a vida toda com ele. Eu estou ali pra ajudar. Mas não é fácil, viu. Não é fácil. Muito complicado. Muito. Teve uma vez que um dos alunos falou: "Ah professora, na minha terra isso aí a gente derruba na paulada". Menino, foram momentos de terror. Era o oprimido assumindo o papel do opressor. Formação social do Brasil ao vivo e em cores, na prática. A aluna trans ouviu, deu um murro na mesa, levantou e quis partir pra cima:

— Eu sou é macho! O que você tem aí eu também tenho. Vamos pra rua que a gente resolve isso agora!

Só não teve agressão porque fui acalmando, outros alunos me ajudaram e a tormenta passou. Na hora a gente resolve, depois treme. Porque tem que resolver. Se você chora, perde o controle, ou sai de cena, se exime, acabou. O trabalho está perdido. Acho que eu fui vitoriosa nesses 31 anos e 4 meses porque nos momentos mais duros eu não me eximi. Depois que passa eu penso; "Minha mãe do céu, como fui capaz de fazer isso?" Não sei. Talvez pelo compromisso que a gente tem com o trabalho, com a vocação. Professor não tem o direito de se esquivar das tragédias sociais do país.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ah, não, pra esse tipo de coisa não tem escola, né? A gente aprende sentindo mesmo. Adquire e vira postura de vida. Eu sou duma cidade desse tamaninho chamada Óleo, no interior de São Paulo, pros lados de Ourinhos. Ali, ainda hoje, querem saber seu sobrenome, de que família você é. Quando eu tinha 9 anos, meus pais se separaram. Minha mãe se apaixonou por outro homem e foi embora. Em Óleo! Imagina só. Então eu passei a ser a coitadinha, a filha caçula do marido abandonado pela mulher. Um homem, além de tudo, sem sobrenome conhecido, um sitiante. Coitadinha da Eliani. Mas eu não queria ser a coitadinha. E não entendia o desprezo que tinham pelo meu pai porque ele não era da família A ou da família B. Eu queria ser tratada como todo mundo, queria que minhas amiguinhas do colégio pudessem vir na minha casa. Não queria ser marcada que nem gado. Na adolescência eu percebi como dá trabalho ser acolhida pelo que a gente é e não pelo que os outros determinam. Então, ou eu aceitava, ou me rebelava. Minha rebelião foi fazer magistério, acho que me dou conta disso agora.

Vim pra São Paulo com 18 anos, morar com minha irmã mais velha na Freguesia do Ó. Me inscrevi para dar aula numa escola estadual na segunda-feira e na terça o diretor me chamou:

— Pode começar.

Peguei uma quarta série. No começo, os outros professores me olhavam e diziam "Tão novinha, do interior, coitadinha, não vai dar conta". De novo a coitadinha. Me chamavam de noviça. De fato eu senti muito medo. Não conhecia a cidade. Tinha medo de andar de ônibus. Achava que, se perguntasse, as pessoas me dariam informação errada e eu me perderia, não saberia mais voltar. O que eu fazia: ia da Freguesia até a Lapa, observava os ônibus que voltavam, tomava nota na minha cadernetazinha, marcava o número do ônibus, a cor, tudo. Pra poder circular sem ter que perguntar a ninguém. Anos depois, já professora na alfabetização de adultos, uma aluna trans me falou:

— Professora, a senhora não faz ideia do sofrimento que é pruma traveca — elas falam assim, então acho que posso reproduzir a fala pra você — a senhora não faz ideia do sofrimento que é pruma traveca tomar um ônibus. Pra uma traveca analfabeta, então, é 100% de certeza de que vão dar informação errada, por pura maldade, isso se não derem porrada também.

Como não me colocar no lugar dela? Como não entender o sofrimento dela? E lembrando disso agora eu me emociono porque essa é uma boa medida dos 28 anos que lecionei para adultos. Não teve um dia sequer que eu tenha voltado pra casa sem me emocionar. Meu avô, que não estudou, mas era um homem sábio, dizia que palavra dita é palavra empenhada. "Falou, cumpra." Eu carrego isso como educadora. Quer dizer, carregava, ai meu deus, me aposentei. O que eu estou tentando te dizer: quando a gente entra no magistério é como se empenhasse uma palavra. A gente assume um compromisso com as pessoas, com a coletividade, um compromisso calçado na empatia. Só que estamos vivendo um retrocesso trágico nesse momento do país. O risco de perdermos o que vínhamos construindo desde a redemocratização é real. Querem uma educação de números, não de pessoas. Muita coisa já se perdeu. O professor, se quiser revolucionar, ele revoluciona. Tem força pra isso. Só que o ambiente na educação pública é de medo e acomodação. O que a gente mais ouve é "tá ruim mas tá bom". Eu detesto essa expressão. Acho cínica, vil. Prefiro o Guimarães Rosa: o que a vida quer da gente é coragem.

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Na educação de adultos, o que prende o aluno à sala de aula é algo muito frágil, quebradiço como asa de mariposa. Esfarela assim, ó, do nada. A escola não é prioridade pra eles. Não tem como ser. É o "se der eu vou". Antes da escola vem o trabalho, a casa, os filhos, o almoço, a janta, a sobrevivência. Então, quando eu fui à escola pela última vez, na quarta-feira, eu queria na verdade lembrar meus alunos do acordo que nós fizemos um dia:

— Pessoal, lembra que a prô disse que estava pra se aposentar? Então, o dia chegou. Eu não venho mais a partir de amanhã. Um vai ter que segurar o outro, pra ninguém desistir. A gente combinou isso, não foi? Vocês vão cumprir o acordo? A classe precisa ser unida e tocar em frente.

Olha, falar o "até logo" foi muito difícil. Que dor. Mas segurei pra não chorar, como sempre fiz. Eu tinha que passar confiança pra eles. Aí me despedi deles, sem abraço nem aperto de mão por causa da pandemia, corri pro banheiro e chorei. Continuei chorando no carro, no caminho todo de volta pra casa, e mais um pouco na cama, antes de dormir.

Aí, como sou síndica do meu prédio, me refugiei nisso. Trabalho feito uma louca durante o dia, o que é esquisito, porque fazia muito tempo que eu dava aula à noite. Mas, agora, de noite eu estou em casa e nem sei o que fazer. Pego alguma coisa pra ler, vejo televisão e me sinto meio envergonhada: "Nossa, será que eu posso fazer isso? Sentar aqui e tomar um vinho?" Imagina?! Outra diferença é que deixei de ser amada e passei a ser odiada, né? Síndico, você sabe, é um ser odiado. Os moradores vêm falar comigo e se apresentam pela profissão. Eu sou fulano, advogado. Sou sicrano, engenheiro. Beltrano, médico. Tá, e daí?, eu sou professora do ensino público. Quer dizer, fui. Bom, talvez eu seja pra sempre. Deixa eu te contar: ontem saí pra dar a minha caminhada e o Almir, porteiro do prédio vizinho, que foi meu aluno, me chamou:

— Professora, professora, tem um minutinho?

— O que foi, Almir?

— Sabe o que é? Eu falei com uns companheiros aqui do serviço que também não estudaram e a gente quer fazer aula. Mas tem que ser com a senhora.

— Xiiii, Almir, acabei de me aposentar.

— E não pode ser aula tipo aula particular, professora? Assim só assim pra nós?

Ai, menino, você acha que dá pra dizer não?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eliani Andrade, 57 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.