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Trombadas

As percepções de Jefão

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

18/11/2021 04h01

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Ó, mano, assim: eu tomava remédio pra dormir, remédio pra acordar, bebia porque tava triste, bebia porque tava alegre, bebia pra esquecer. Tinha insônia, ansiedade, síndrome do pânico. Tava desse jeito aí, todo fodidão. Me incomodava também a barriga: 100 quilos pra 1,75m de altura, muita coisa. Aí naquele dia que ia abrir minha mente pra sempre, num beco da favela do Moinho, ali nos Campos Elísios, Bom Retiro, Barra Funda, ali no miolo, de longe eu avistei o Abdala. Ele é africano, tá ligado? Amigo meu aqui do Centro. Tava segurando umas luvas de boxe.

-- Ô Abdala, que cê tá fazendo aqui, véio?
-- Tô fazendo boxe.

Eu parei, olhei em volta, dei aquela raciocinada e perguntei pra ele:

-- E emagrece isso aí?
-- Você vai ficar com um condicionamento físico muito bom.
-- Mano, então me leva, porque não tô aguentando mais. Eu preciso fazer alguma coisa com a minha vida.

O Abdala me levou. Era o Boxe Autônomo, um projeto da hora que hoje tá na Casa do Povo, no Bom Retiro. Fui com medo, porque ouvia dizer que no boxe a gente precisa quebrar o nariz logo de cara e tal. Não era nada disso. O que eu quebrei foi a visão que eu tinha de mim, dos outros, do mundo, várias paradas. O boxe me fez perceber muitas coisas.

Primeiro eu percebi que em três meses eu perdi 10 quilos. Sem fazer dieta nenhuma. Gostei, né? Logo depois percebi que o álcool atrapalhava os treinos. À essa altura eu já tava dando um tempo na semana, mas enfiava o pé na lata sexta, sábado e domingo e na segunda não conseguia treinar. Faltava disposição, não rendia, me cansava muito. Também tomava remédio pra hipertensão. Misturado com o álcool, porra, uma bagunça.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Aí eu ia pro treino e me sentia mal porque não conseguia cumprir a primeira lição do boxe, que é o respeito. Respeito, mano. O respeito. Avacalhado fisicamente eu atrapalhava o treino dos meus colegas que tinham se cuidado e estavam ali a fim de dar um gás, se dedicar. Uma vez fui fazer sparring com um cara e ele reclamou:

— Porra, mano, você treinou comigo semana passada e tava muito melhor. Eu sei que você pode dar mais que isso. Por que não tá rendendo hoje?

Então eu percebi que essa parada do respeito é importante. E respeito pra todo mundo, tá ligado? Respeitar o limite do adversário, por exemplo, é a coisa mais bonita que eu aprendi no boxe até agora. Assim, quando a gente faz aula de combate, tem rodízio das duplas. Uma hora eu faço luva com o cara mais experiente da academia, outra hora com um menino de 12 anos, depois com um senhor de idade. E as duplas vão girando. Não tem essa de quebrar o oponente. Isso não existe. Você tem que respeitar o limite dele. Saber mais, ou ser mais forte, ou mas rápido, não te dá o direito de abusar de quem sabe menos, é mais fraco, ou mais lento. Quem pode mais respeita quem pode menos, tendeu? Essa é a parada.

Aí, quando a gente entende que precisa respeitar o outro passa a querer ser respeitado e a se respeitar também. O boxe faz a gente ser uma pessoa respeitadora, eu percebi isso aí. Então eu parei de beber, porque era um desrespeito total. Na sexta-feira, os camaradas me chamava pra ir no bar e eu só dizia "Vou não, mano, brigado". Eles me zoavam, né? Mas tudo bem, porque na segunda eu tava tinindo pra treinar. Baixei pra 77 quilos até.

Então chegou um dia que ia ter uma luta de apresentação num evento no Poupatempo da Sé. Me inscrevi. Mas fiquei tão mexido, mano. Na noite anterior passei mal pra caramba. Tive disenteria, febre, insônia, não conseguia comer nada. Minha luta era às cinco da tarde e fiquei o dia inteiro num estado físico estragado. Só sei que quando eu pulei a corda e pisei no ringue tudo o que eu tinha sumiu, cara! A barriga parou de doer, a respiração ficou tranquila, virei outra pessoa. Era outro Jefão. Fiz os três rounds numa boa e, quando acabou, fiquei bravo com o juiz. Eu queria mais. O cara tinha que me deixar sentir um pouco mais daquilo, porra!

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ah, mano, te peço desculpa, mas eu nem conheço palavra pra te explicar como eu me senti. Foi uma sensação tão boa, tão boa. A única vez que eu tinha me sentido daquele jeito foi quando consegui comprar um Corsinha 2001, meu primeiro carro. Preto, 1.0, bonitinho. Mó orgulho. A gasolina tava barata e eu ia todo fim de semana pro Capão Redondo mostrar o carro pros meus amigos lá. Mas era uma alegria diferente. Sei lá, a alegria do Corsinha diminuiu quando ele virou encrenca: muita oficina, muita despesa. Aí eu percebi que, ao contrário da alegria de possuir as coisas, a alegria do boxe não passa, cê tá ligado? Diferente pacarai isso aí. Não é um pico de alegria que depois vai embora ou vira tristeza. A alegria do boxe continua. Foda, mano, fico até emocionado.

O Corsinha? Comprei ele quando eu era dono de bar na Cracolândia. Na Dino Bueno, no fluxo mesmo. História longa, mas vou resumir pra você. Eu sou do Recife. Vim pra São Paulo com 5 anos. Eu, meus quatro irmãos e minha mãe, que se separou do meu pai porque ele era um homem violento. Moramos no Capão Redondo uns 20 anos, aí minha mãe começou a militar no movimento de luta por moradia e nós viemos pro Centro. Eu era motoboy, sofri um acidente, me quebrei todo e não podia mais andar de moto. Pedi ajuda prum amigo que tinha uma pensão na Cracolândia:

— Ô, mano, arruma um espacinho pra mim na sua pensão pra eu montar um comércio?

Ele cedeu o térreo. Um buraco minúsculo cheio de entulho. Minha mãe me deu uma caixa de corote, minha mulher me deu um fardo de Dolly, eu joguei tudo no isoporzão com gelo e fui lá vender. Com o dinheiro que levantei, comprei uns pacotes de cigarro paraguaio. Vendi tudo também e comprei pão e salsicha: passei a comercializar hot dog. E assim fui indo, variando os produtos, tirando o entulho do buraco e me estabelecendo. Foi nessa que consegui comprar o Corsinha. Até que numa operação da Prefeitura e da polícia, que vão lá e batem em todo mundo, eles lacraram meu bar. Agora eu moro mais pros lados da avenida São João. Alugo uns quartinhos, guardo mercadoria dos camelôs à noite e vou me virando.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Voltando pro boxe, como eu tava te dizendo, eu parei de beber mas continuava viciado em remédio, tá ligado? Quero falar disso aí. Tomava remédio pra ansiedade. E no treino eu ficava meio grogue, não percebia a mão do adversário chegando na minha cara e acabava tomando soco demais. "Não dá! Preciso parar com o remédio também." Era mais difícil que a bebida. Por causa dessa porra de ansiedade eu fiquei dez anos sem andar de ônibus e metrô. Tô te falando. Dez anos. Um dia eu tava dentro do metrô, sozinho, e passei mal. Tive ataque de pânico. Faltou ar, o coração disparou, as pessoas pareciam bichos me sufocando. Desci na primeira estação, era a Vila Mariana, corri pra rua e de lá voltei andando até o Centro. E só fui piorando. Quando ia pra ZN, Santana, Carandiru, só de ouvir o metrô passar por cima eu tinha que sentar na calçada pra não desmaiar. Passei a me achar um porcaria. Eu tava com complexo de inferioridade, tendeu? Sofri, véio. Eu ia na psicóloga e chorava pra ela: "Pelamordedeus, você precisa me ajudar a andar de metrô de novo". Mas, pra te falar a verdade, foi no boxe que eu sarei.

Porque eu cheguei lá e percebi que tinha todo tipo de gente: preto, branco, japonês, boliviano, árabe, homossexual, lésbica, criança, idoso, estudante, garçom, publicitário. Quando dei por mim eu tava trocando ideia com a galera e todo mundo tinha problema também, não era só eu. Teve um dia que um casal de gringos, o Iacopo e a Paola, eles são da Itália, eles me chamaram pra tomar um suco com eles. Nunca na vida uma pessoa branca tinha me chamado pra tomar um suco e conversar. Porra, eu me senti feliz, forte. O boxe me abriu essa percepção, tá ligado?, de que eu podia nocautear as porras toda que me deixavam pra baixo. Uma por uma.

Tanto que um dia colei numa amiga que conhecia meus problemas e falei:

-- Ô, cê teria coragem de dar um rolê de metrô comigo?
-- Claro. Só marcar.

Mas nem precisou. Nesse meio-tempo um camarada me convidou pra dar aula de boxe numa clínica de reabilitação para dependentes químicos em Itapecerica. "Ô, mano, que é isso? Eu sou aluno, sou professor não. Sei muito pouco ainda." Mas ele insistiu e eu resolvi consultar meu treinador, o Piva, porque a última coisa que eu quero nessa vida é atropelar o Piva. Puta cara da hora e importante na minha vida. Ele me disse assim:

— Jefão, o pouco que você sabe ja é o bastante pra ajudar quem tá precisando de ajuda. Vai lá.

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Imagem: TAB Trombadas - Jefão

Eu fui, né mano? Mas pra ir eu precisei do quê? Do metrô. No primeiro dia, um sábado, acordei cedinho, botei a mochila nas costas e parti pra estação São Bento. Parei na frente, quis voltar pra casa. Mas fechei o olho e pensei "caraio, tem gente me esperando". Pedi pra deus me dar força e desci a escada rolante. Foi difícil, vou te falar. Difícil. Mas eu consegui. Hoje sou uma pessoa que anda de metrô de novo, cara. Você não faz ideia de como isso me deixa feliz. Agora até durmo no vagão e passo da estação onde preciso descer, tá ligado? Sem álcool, sem comprimido. Faz seis meses já. Só mandando meus demônio tudo pra lona.

Lá na clínica é bom demais. Sábado passado organizei nosso primeiro torneiozinho. Quatro combates. Levei um material de sinalização de obra que a Prefeitura largou aí na rua, uns plásticos, fitas, e improvisei um ringue. Na hora, apareceu até um locutor de rádio que narrou as lutas. Tinha quase cem pessoas assistindo, parentes, funcionários e amigos do pessoal em recuperação. Esses caras são foda. Eu chego lá no sábado de manhã e eles já estão prontos esperando o treino. Não faltam nunca, tão sempre animados. Mó dedicação, você tem que ver. Vejo mais dedicação ali do que em muito lugar aqui fora. Fico feliz, sim, porque eu acho que tô retribuindo um pouco. Todo mundo tem direito de se recuperar dos seus problemas, né? É só dar uma chance, não abandonar as pessoas, respeitar elas. Eu percebi isso, tendeu?

É isso aí, mano. O boxe transformou a minha vida. Na pandemia, sem aula presencial, eu comecei a treinar aqui no Vale do Anhangabaú. Todo fim de tarde, de noitinha, eu venho. Tem tudo o que eu preciso aqui. No poste de luz, ó só, seguro aqui e pow: faço panturrilha. No canos de prender bicicleta, se liga, bíceps e tríceps. Naquele banco de madeira ali eu engancho os pés assim, vem ver, e, ó, abdominal. Um, dois, e. Uh! Também faço uma cordinha pra soltar e aqui nessa árvore é o principal: penduro o saco de areia e mando minhas sequências. Jab, jab, direto! Jab, direto, cruzado! Jab, direto, esquiva, gancho! Uh! Dá pra suar legal, célôco.

Dor? Tem dor não. O que tem no boxe é libertação. Uma vez me mandaram um videozinho de uma cantora negra, acho que americana, dizendo que liberdade pra ela é não sentir medo. É isso aí. O boxe tirou meus medos. Você tá ligado: quando a gente é preto e pobre, cresce com medo. Medo de uma agressão, uma discriminação, um xingamento, medo de tomar tiro da polícia, medo de não ser nada na vida. Que depois descamba pra medo de conversar, de ficar perto de outras pessoas, de andar de metrô. Então, mano, depois que o boxe entrou na minha vida, é o seguinte: se você me perguntar se eu prefiro tomar uma murro na cara ou continuar com medo de todas essas paradas aí, eu vou te responder na maior tranquilidade: "Tá esperando o que pra me socar, irmão?"

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Jefferson Borges, 42 anos, o Jefão

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.