Os esboços de Maria
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
-- Pois não?
-- Oi, boa tarde. É verdade que vocês vão fechar?
-- Já fechamos.
-- Puxa vida. Que triste.
-- É a palavra que eu mais tenho ouvido nos últimos quinze dias.
-- Qual?
-- Triste. Tristeza. Até desolação disseram.
-- Mas é desolador mesmo.
-- Ô se é. Eu choro dois baldes todo dia.
-- Pensar que a gente vai subir as escadas do Largo da Memória e dar de cara com essas portas fechadas.
-- Pois então.
-- Passar a caminho do Municipal ou da Biblioteca sem poder dar aquela espiada nas tintas, nos papéis, nos lápis da vitrine e sonhar com o quadro que um dia vai pintar, o romance que um dia vai escrever.
-- Ih, menino, é melhor você entrar. Entra, vá. Aceita uma água?
Mas, olha, se você está triste pelo fechamento da loja, e eu estou muito mais, é sinal de que fizemos nosso trabalho direitinho. Aí me conforta um pouco. Porque não está fácil, ãh: é uma tristeza que entristece de um jeito que nem sei explicar. Eu ainda venho, de portas fechadas, porque há duplicatas pra pagar e pusemos o prédio a venda. Depois não sei. Tenho lá um jardinzinho em casa, comprei umas sementes, acho que vou mexer na terra. De resto é assim. Setenta e um anos em atividade. Ficamos bastante. Mas o fim é o fim, que vai fazer? Se a gente consegue atravessar o tempo deixando boas lembranças pras pessoas, bom, já é alguma coisa.
Foi meu pai que abriu a papelaria, em 1952, na rua São Bento. O nome desde o início foi esse mesmo, Papelaria Rosário, porque ao lado tinha o Cine Rosário, pegado ao Martinelli, tinha o Largo do Rosário, hoje Praça Antônio Prado, e a Casa Rosenhain, que era uma firma grande de material pra desenho técnico, engenharia, agrimensura e tudo o mais. Aí nós ficamos sendo Papelaria Rosário. Depois, quando a princesa Gerbur pediu o imóvel na São Bento pra levantar o edifício que continua lá, mudamos pra a Libero Badaró. E em 1979, aí meu pai já falecido, eu e meus irmãos abrimos essa filial na Xavier de Toledo.
Fomos bons, ãh? Uma referência, como a turma dizia. Se você procurasse um tipo de grafite, de pincel, uma tinta, certo papel vegetal, e a Rosário não tivesse, ninguém mais na cidade teria. Eu? Desde o início. Comecei na loja assim que concluí o colégio, uns 19 pra 20 anos. Estou com 91 agora. É tempo pra burro.
Hummm. Deixa eu pensar. Já sei. Pronto. O que de mais extraordinário aconteceu foi me dar conta de que a vida passa num instantinho. Muito, muito rápido, você não sabe da missa a metade. Parece que foi semana passada que fomos morar na rua Itapeva, na Bela Vista. Maquequeisso!, sou bixiguenta de quando a rua Itapeva era de terra e nem existia a Nove de Julho. Ali pra baixo era um matagal onde nós passeávamos de jegue. Tínhamos um jegue em casa, você acredita? Ficava no quintal. Meu pai ganhou de uns conhecidos do Nordeste, dos tempos que ele trabalhou pros Matarazzo.
Um dia o bichinho chegou num caminhãozinho à nossa porta, disseram "Presente pros filhos do italiano", pronto, passamos a ter um jegue. A garotada no bairro andava bicicleta e nós, de jegue. Eu, Luiza, Antonio e Benvenuto, os quatro irmãos. Mas como chamava o jegue? Ai, péra lá, péra lá que eu já lembro. Ô meu deus! Já vou lembrar.
Bom, depois, na Itapeva, puseram paralelepípedos e aí vinha um camarada com um latão de piche quente pra preencher as fendas. Aquilo, quando dava calor, levantava uma porção bolhas, a gente ia pisar pra estourar, grudava no sapato, era uma farra. É como se eu estivesse vendo eu e minha irmã, meninotas de tudo, pisando nas bolhas. Foi outro dia, benzadeus. E ela me faz uma falta, mas uma falta, que, olha, nem sei, viu. Tem dez anos que ela morreu e até hoje eu não acredito que só sobrei eu.
Não, não casei nem tive filhos. Eu viajei. Ah, pra todo canto. O Brasil eu conheço inteiro. Mas se fosse pra voltar a um único lugar eu escolheria o fim do mundo: Ushuaia, na Argentina. Me encantei com aquilo. Não sei. Essas coisas não têm por quê. Você se encanta e pronto. Quando dei de cara com a geleira pela primeira vez, eu chorava, chorava, sentia uma vontade imensa de agradecer e nem sabia a quem. Que panorama, ãh? Olha, você pode estar certo de uma coisa: quando eu morrer, Ushuaia vai ser uma das imagens nos meus olhos. A outra é o Viaduto do Chá.
Minha segunda casa, né? Porque durante muito tempo nós tínhamos uma loja em cada lado, uma na Líbero Badaró e outra na Xavier de Toledo. Aí eu andava pra lá e pra cá o dia inteiro. Não tem office-boy que cruzou esse viaduto mais do que eu. São mais de 70 anos de Viaduto do Chá, você pensa que é o quê? E antes da papelaria eu já vinha bastante, porque estudei balé no Municipal, e a escola ficava embaixo do viaduto. Sim, dancei em óperas, espetáculos, mas meu pai não gostava. O italiano era fogo. Só me deixava vir se um dos meus irmãos me acompanhasse. Você imagina: eu era alta, bailarina, aluna do Dante Alighieri, tínhamos certa condição, embora vivêssemos do trabalho.
Até me afeiçoei por um ou dois aí, mas acho que fiz melhor negócio em viajar do que lavar cueca de marido. Minhas amigas dizem que eu fiz bem. São amigas do nosso grupinho de baralho. Somos meia dúzia só, nos conhecemos desde os 10 anos de idade. A mais jovem tá com 90. Sim, todas bem. Eu de bengala, uma de marcapasso, a outra meio esquecidinha, mas estamos bem.
Deixa eu te mostrar uma coisa bacana. Olha aquela fotografia ali na parede, no alto. Somos eu, minha irmã e o Cardinale, um amigo nosso, festejando a Copa de 58 no viaduto. Saiu no jornal do dia. Eu adorava o goleiro Gilmar, um bonitão, viu. Nessa época frequentávamos bastante um restaurante que tinha na São Bento, como era mesmo o nome? Eles tiravam um chope que era um negócio, ãh? Péra que já vou lembrar. É duro quando a gente vê um lugar ou uma pessoa, sabe de tudo a respeito mas o nome não vem. Me irrita de um tanto. Daqui a pouco eu lembro.
Bom, nas Diretas Já eu estava aí também. Ah, sim, sempre fui atrevidinha em política, sempre pensei diferente. Meu pai era meio intelectual, conhecia todo mundo, então lá em casa frequentavam o Volpi, o Di Cavalcanti, o Lívio Abramo, o Bruno Giorgi. Teve um tempo que o Aristides Lobo, aquele jornalista comunista, não é do seu tempo, bom, ele se escondeu do Getúlio lá com a gente. Todo dia de manhã era uma missa, viu? Antes de sair pro trabalho, meu pai falava quatrocentas e oitenta e sete vezes que não podia contar pra ninguém que tinha um camarada estranho morando na nossa casa.
Mas do que eu estava falando? Não era de política. Era de quê mesmo? Ah, sim, do Viaduto do Chá. Bom, a turma diz que a cidade cresceu. Então eu vou te dizer uma coisa: a cidade diminuiu. Sim, porque quanto mais prédios, menos longe a gente enxerga. O que cresceu foi a distância entre as pessoas. É. As amizades ficaram diferentes. Não sei bem, me diga você, porque faz tempo que não saio pra tomar um chope: hoje as pessoas vão tomar chope só pelo chope e pela companhia, sem assunto importante pra tratar, negócios, trabalho, tal e coisa? Porque tem que existir vida que não seja trabalho, ãh?, senão fica difícil.
Vou te contar outra coisa: mesmo depois de crescidos, meus irmãos já casados e com filhos, dava sete, sete e meia da noite nós baixávamos os quatro na casa dos nossos pais pra tomar um aperitivo. Conversávamos, contávamos da vida, dos planos, dos problemas, pedíamos conselho uns pros outros, nos abraçávamos e bebíamos um camparizinho. Todo santo dia, de segunda a sexta. Depois cada um ia pra sua casa, certo de que havia com quem contar qualquer que fosse a dificuldade. O dia seguinte ficava até mais leve. Hoje, ihh, hoje se eu precisar de um pouco de sal, mal conheço meus vizinhos pra pedir. Então, menino, eu te pergunto: a gente que chega nessa idade em que conheceu a vida de outro modo, noutros termos, faz o quê agora? Não faz. Aguenta.
Que foi isso? Bateram na porta? Waldir, bateram na porta, você atende? O Waldir trabalha com a gente tem uns 50 anos. Quantos, Waldir? Isso, 48. Ele entrou menino de tudo, hoje taí, setentão. Um grande amigo. Era pra eu ter fechado a loja anos atrás, não fechei por causa dos funcionários. A mais nova tinha 28 anos de casa. Todos entraram solteiros, casaram, tiveram filhos e netos. São pessoas com que eu pude contar a vida inteira. Então, no sábado 31 de março, nosso último, eu chamei todos eles com as famílias pra festejar. Eles vieram, cada um escolheu o que quis no estoque e levaram de presente. O que sobrou eu vou doar. Aí mandei fazer essa caneca pra marcar a data.
Sou meio apegada em objetos com história. Mas isso é tormento, ãh? Lá em casa eu tenho vasos que eram do meu pai, centenários. Tenho rádio que eles ganharam no casamento. Talheres. Só coisas de valor afetivo. Eu olho penso: Madonna mia, o que vai ser disso tudo quando eu for embora? Não faço ideia. A garotada de hoje não se apega, não é? Outro dia dei pro meu sobrinho um estojo de toucador que foi da minha mãe. De couro, com escova, espelho, tudo, tudo. Toma, leva pra sua filha, ela é jovenzinha, pode gostar. Ma che. Ele me trouxe de volta. Disse que a menina assim que bateu o olho disse que ia vender. É.
Quem era na porta, Waldir?
— Uma moça perguntando se a gente vai fechar mesmo. Expliquei que já fechamos e ela pediu pra vir amanhã comprar algo só pra guardar de recordação. Eu disse que não sobrou muita coisa, mas tudo bem.
Você vê? Como é que a gente ouve uma coisa dessas e não se emociona? Até o último dia essa loja vai me emocionar, viu. A gente decide fechar e acha que acabou, foi, passou. Que nada. Tem coisa acontecendo ainda. É por essas e por outras que eu sempre tive pra mim que a vida é um esboço. Não adianta querer fazer arte-final. Tem que deixar margem pra rabiscar, testar cores, texturas, não calcar demais o lápis, pra conseguir apagar e refazer se for preciso. Arte-final, como diz o nome, é pro final, o final inevitável. Aí você contempla a sua obra e vê se valeu a pena, se gosta do resultado, se os amigos gostam. Isso que importa. Mas enquanto está vivendo o negócio é rascunhar, já que nunca vai estar pronto. O Da Vinci fazia rascunho. Van Gogh também. Rembrandt. Esses sabiam das coisas, maquequeisso! E a turma aí querendo acertar de primeira.
Maria Cirenza, 91 anos
————————————
Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.