Larson vibra, Marvel vende, mas qual é o real feminismo de "Capitã Marvel"?
A julgar pelo entusiasmo das fãs e pelas entrevistas da própria heroína da vez, o feminismo parece ter finalmente cruzado a última fronteira do cinema hollywoodiano: com a estreia de "Capitã Marvel" na quinta-feira (7), o estúdio que transformou os filmes de super-heróis no maior e mais rentável nicho do cinema por fim entrega sua primeira aventura protagonizada por uma mulher, 20 filmes e quase 11 anos depois de se lançar nessa bem-sucedida empreitada com "Homem de Ferro" (2008).
Mas não é só isso. Superada em pioneirismo por sua rival, a DC, que em 2017 lançou "Mulher-Maravilha", a Marvel tem abraçado mais abertamente o discurso feminista em torno do filme - que também tem codiretora e corroteiristas mulheres -, principalmente por meio de sua protagonista, a vencedora de um Oscar de melhor atriz Brie Larson.
"Estamos subvertendo o gênero de muitas formas e abrindo novos caminhos, e estamos fazendo isso de uma maneira muito natural. Não estamos tentando ser militantes. Esse é apenas o jeito dela e essa é a história que estamos contando", disse Larson à TV americana, sem hesitar em usar a palavra que começa com "f". "Além disso, eles [a Marvel] disseram que queriam fazer o maior filme feminista de todos os tempos", completa.
A própria natureza deste filme significa que estou tendo as conversas que gostaria de ter sobre o que significa ser uma mulher. O que é ter força, as complexidades da experiência feminina, a representação das mulheres
Brie Larson, em entrevista à revista "Marie Claire"
"É surpreendente e muito legal que eu possa falar dessas coisas no meu primeiro mega filme. Mas é também por isso que eu tenho esperado e sido criteriosa com a escolha dos meus trabalhos", completa ela, feminista que se empenha na defesa de vítimas de estupro, critica com vigor a maneira como o cinema representa as mulheres e, de quebra, foi uma das primeiras articuladoras do "Time's Up", movimento surgido na esteira das denúncias de assédio e abuso sexual contra o produtor Harvey Weinstein e outras personalidades do indústria, com o objetivo não só de agir contra o assédio sexual, mas também de lutar por espaços e salários iguais para as profissionais da área.
Por esses motivos, Larson aceitou o papel que pode transformá-la em inspiração para mulheres e meninas. Ela entra na pele de Carol Danvers, a heroína mais poderosa do universo cinematográfico Marvel - palavras do próprio presidente do estúdio, Kevin Feige. Lançada nos quadrinhos em 1968 e uma das primeiras personagens "feministas" da editora - ainda que de barriga de fora em boa parte de sua existência -, Danvers é uma piloto da Força Aérea norte-americana entre os anos 1980 e 1990, quando mulheres não eram permitidas em combate.
Com mais ou menos dois minutos de filme, eu estava soluçando, e pensei: 'Por que estou chorando tanto com isso?'. Mas era o fato de ver todas aquelas mulheres guerreiras tão autossuficientes. Eu não tive algo assim para me identificar quando era criança - meu herói era o Indiana Jones. Ter a chance de ser um exemplo assim é poderoso e excitante
Brie Larson, sobre o que sentiu quando assistiu a "Mulher Maravilha", em entrevista à revista "Hollywood Reporter".
A heroína e o empoderamento
Transformar-se num exemplo é, à primeira vista, exatamente o que Larson faz: "Capitã Marvel" é em boa parte uma metáfora nada sutil de um processo de empoderamento feminino. Danvers é a garota que nunca se encaixou muito bem nos espaços destinados a meninas e preferia participar de atividades ditas masculinas, como corridas de kart e pilotar caças. Nesse contexto, o filme traz flashbacks de vários momentos em que as pessoas a desencorajam. Mas ela persiste, claro.
Vítima de um misterioso acidente que lhe dá poderes inimagináveis e a leva para outra galáxia, ela ainda passa uma boa parte do filme ouvindo que precisa aprender a controlar suas emoções (o clichê machista de que mulheres são controladas pela emoção, enquanto os homens dominam a razão), até finalmente entender que seus sentimentos e sua intuição são dons, não defeitos (não sem uma ajudinha de um novo aliado, Nick Fury, interpretado mais uma vez por Samuel L. Jackson), e só assim conseguir usar seus poderes ao máximo.
[Ela] foi impedida de ir atrás das coisas que queria fazer durante boa parte de sua vida. Diziam constantemente que 'garotas não deveriam fazer aquilo', ou que 'é muito perigoso, você vai se machucar'. Este filme é muito sobre essa personagem aprendendo a não se boicotar e não aceitar as barreiras colocadas à sua frente"
Kevin Feige, presidente da Marvel Studios, à "Hollywood Reporter"
O filme ainda traz mensagens sobre a importância da amizade e apoio entre mulheres (ainda que em menor escala, pois Danvers só tem esse tipo de relação quando está na Terra) e a igual (às vezes até maior) capacidade científica feminina, além de se esforçar para fugir de um olhar da câmera que, desde os primórdios do cinema, tende a transformar o corpo de qualquer personagem feminina em objeto sexual - foi basicamente a análise e a crítica dessa característica que levou ao surgimento de uma teoria feminista do cinema nos anos 1970, a partir do artigo "Prazer visual e cinema narrativo", da britânica Laura Mulvey. Aliás, nesse quesito, "Capitã Marvel" fica para trás de "Mulher-Maravilha", que gasta menos energia tentando dessexualizar sua protagonista e opta por subverter esse olhar fazendo um comentário na forma de uma inversão bem-humorada, em que é o herói homem que se torna vítima da objetificação.
Briga antiga
Já deu para perceber que essa é uma discussão longa e antiga, que traz para arena não só críticas e pesquisadoras, mas também as profissionais da indústria. Tanto que a atriz Geena Davis, que ganhou fama e uma indicação ao Oscar com "Thelma & Louise" (1991), criou o Instituto Geena Davis de Gênero na Mídia, que faz estudos e lobby junto aos estúdios para melhorar a representatividade feminina. O lema do grupo é bem claro: "se elas podem ver, elas podem ser".
Uma pesquisa feita por essa organização em 2016 - foram entrevistadas 4,3 mil mulheres no Brasil, China, Índia, Arábia Saudita, África do Sul, Rússia, Austrália, Reino Unido e Estados Unidos - trouxe resultados que reforçam a importância desses projetos:
- 90% das mulheres entrevistadas sentiam que figuras femininas inspiradoras em filmes e na TV eram importantes;
- 61% disseram que figuras femininas inspiradoras dos filmes e da TV influenciaram as suas vidas;
- 58% disseram que se inspiraram para mostrarem mais ambição e assertividade;
- 1 em cada 4 mulheres brasileiras disseram que modelos midiáticos femininos positivos lhes encorajaram a saírem de relacionamentos abusivos;
- 74% das mulheres em todo mundo gostariam de ter tido mais figuras femininas inspiradoras quando eram crianças.
Outros estudos mostraram ainda o aumento do interesse por carreiras científicas e pela prática de arco e flecha graças às personagens Dana Scully, da série "Arquivo X", e Katniss Everdeen, de "Jogos Vorazes", respectivamente.
Bom demais para ser verdade
No entanto, ainda que se reconheça a importância da representatividade e que seja positivo que grandes produções (e grandes estrelas) façam um esforço de popularizar pontos do feminismo - não só por direitos, mas também por mudanças culturais -, é preciso questionar que tipo de feminismo é esse que está sendo abraçado por Hollywood.
Como já apontaram importantes teóricos da cultura como Stuart Hall, fundador dos Estudos Culturais, e a pesquisadora feminista de cinema Christine Gledhil, ao falar de um produto da cultura de massa estamos diante de um processo de produção marcado por inúmeras forças contraditórias, que incluem os interesses de diferentes grupos de consumidores (no caso, em grande parte mulheres cansadas da forma como são representadas no cinema), a ideologia e os propósitos econômicos que sustentam essa indústria (movida pela busca de lucro) e as práticas profissionais e estéticas dos profissionais "criativos" que trabalham nos filmes (que podem muito bem ter a intenção de levar o feminismo a um público amplo). Isso nos leva a padrões contraditórios de cooptação e apropriação seletiva do feminismo.
Se por um lado, como já foi apontado, "Capitã Marvel" escapa da armadilha na qual qualquer o corpo feminino é posto como disponível para ser lido sexualmente (embora certamente Brie Larson não esteja imune a isso) e consegue evitar que a heroína adote necessariamente um papel "masculino" que anule características tradicionalmente vistas como "femininas", como bondade e humanidade, por outro lado o filme se encaixa na versão de feminismo preferida da mídia, que trata o movimento como estilo de vida, atitude e identidade.
A socióloga e teórica cultural britânica Rosalind Gill aponta que esse é um tipo de feminismo que evita referências à política feminista e, em geral, trata o sexismo "como algo individual, em vez de estrutural e sistêmico, e menos ainda como conectado a outras desigualdades ou localizado no contexto mais amplo do capitalismo neoliberal".
As dificuldades que a personagem Carol Danvers enfrenta para exercer sua versão do que é ser mulher nunca é apresentada como parte de algo maior, a não ser, talvez, pela rápida menção de que a Força Aérea norte-americana não permitia mulheres pilotando em combate até recentemente. A ênfase é na ideia de tomar o controle da vida individualmente, deixando de lado a ideia de que "o pessoal é político", que serviu de combustível para o movimento feminista dos anos 1960.
Apoiando-se em um vocabulário que inclui palavras como 'empoderamento' e 'escolha', esses elementos são então convertidos em um discurso muito mais individualista, e são implantados nesse novo formato, especialmente na mídia e na cultura popular, mas também por agências do Estado, como um tipo de substituto do feminismo
Angela McRobbie, pesquisadora cultural britânica, sobre como a mídia se apropria do discurso feminista
McRobbie também afirma que "o tipo de feminismo que é levado em consideração nesse contexto é liberal, feminismo de igualdade de oportunidades, enquanto o que é invocado mais negativamente em outras partes é o feminismo radical preocupado com crítica social".
Nesse sentido, o feminismo de "Capitã Marvel" está mais próximo de uma versão corporativa ou neoliberal, que parte de discursos psicologizantes de promoção da confiança feminina, da autoestima e do autoamor como solução para todas as injustiças, e de um feminismo de celebridades, marcadamente posicionado como algo não agressivo e não combativo - praticamente um manual de autoajuda.
Outra questão que não pode ser ignorada é o papel que Hollywood sempre desempenhou dentro das estratégias de imperialismo cultural e econômico dos Estados Unidos. Carol Danvers, apesar de exemplo positivo para as meninas em outros aspectos, também representa o poderio militar norte-americano (ela escolhe para seu uniforme as cores da Força Aérea) e a ideia de que esse poder deve ser usado "para o bem da humanidade" (no caso, para o bem do universo), quando sabemos que as intervenções militares dos EUA em outros países em geral são movidas por interesses econômicos.
A Capitã Marvel é sim uma mulher empoderada que alcança o sucesso em áreas que tradicionalmente excluem as mulheres, mas não deixa de ser uma mulher branca norte-americana que se crê a mais apta para salvar não só a Terra, mas também refugiados de outras galáxias, em uma representação pouco sutil do clichê do "salvador branco" colonialista que salva o estrangeiro "pouco desenvolvido".
Cabe aqui apenas a ressalva do esforço que a atriz por trás da personagem faz para quebrar essa lógica e usar seus privilégios para o benefício de outras mulheres. Na maratona de entrevistas e eventos com a imprensa que precederam o lançamento, Brie Larson fez questão de garantir que os jornalistas que a entrevistariam não fossem em sua maioria homens brancos.
"Cerca de um ano atrás, comecei a prestar atenção em como eram os meus dias com a imprensa e os críticos que estavam resenhando os filmes, e percebi que eram esmagadoramente homens brancos", contou a atriz à revista "Marie Claire", à qual exigiu ser entrevistada pela repórter negra e portadora de paralisia cerebral Keah Brown. "Seguindo em frente, decidi assegurar que meus dias com a imprensa fossem mais inclusivos", completa.
Os ponteiros não se movem
Ainda que sejamos generosos e foquemos só nos exemplos positivos que "Capitã Marvel" possa transmitir às meninas, os motivos para celebração continuam não sendo muitos.
A própria Geena Davis sentiu na pele a frustração de achar que as coisas estavam mudando, para então ver que não era bem assim. "Muitas das reações da imprensa na época anunciavam que 'Thelma & Louise' mudaria tudo, que veríamos muito mais filmes protagonizados por mulheres, mais filmes de duplas femininas, mas nada mudou", contou ela em uma entrevista à revista TPM em 2016 . "Nesse sentido, foi muito frustrante e até chocante. De tempos em tempos sai um filme que faz um grande sucesso e vem aquela onda: 'Agora tudo será diferente', mas não vemos isso nos números. O filme 'Jogos Vorazes', por exemplo, poderia ter mudado muita coisa, mas não mudou nada. O ponteiro ainda não se mexeu".
A avaliação feita há quase três anos continua atual. Mesmo depois de toda a visibilidade que a luta das mulheres contra o machismo em Hollywood ganhou com os movimentos "Time's Up" e "Me Too" (de denúncia de assédio e abusos na indústria), o ponteiro continua não se movendo.
Apesar de todo o entusiasmo com o sucesso de "Mulher-Maravilha" em 2017, não só nas bilheterias, mas também em ter uma diretora trazendo uma nova visão do que significa ser heroico, heroínas e profissionais mulheres continuam tendo pouco espaço em Hollywood. De acordo com levantamento anual feito pelo Centro para o Estudo das Mulheres na TV e no Cinema da Universidade de San Diego, a porcentagem de filmes com protagonistas femininas entre as 100 maiores bilheterias do ano variou pouco de lá para cá: era de 29% em 2016, caiu para 24% em 2017 e alcançou 31% em 2018.
O mesmo pode ser dito sobre a quantidade de mulheres trabalhando nos filmes de maior sucesso (que, em geral, têm os maiores orçamentos): as diretoras, roteiristas, produtoras, produtoras executivas, montadoras e diretoras de fotografia eram 17% dos profissionais a desempenharem essas funções nos 250 filmes de maior bilheteria em 2016, 18% em 2017 e 20% em 2018. Quando olhamos apenas para as diretoras, função considerada de mais prestígio, os números são ainda menos animadores: 7% em 2016, 11% em 2017 e míseros 8% em 2018.
A preocupação com todas essas disparidades e contradições que ainda atravessam o cinema é grande porque muita coisa está em jogo em uma cultura em que a imagem ocupa um lugar fundamental. Como bem explicou um dos principais nomes dos estudos de gênero e cinema, a professora de história da consciência da Universidade da Califórnia Teresa de Lauretis, "a representação da mulher como imagem (espetáculo, objeto para ser olhado, visão de beleza - e a consequente representação do corpo feminino como local da sexualidade, espaço de prazer visual, ou sedução do olhar) é tão difundida na nossa cultura, muito antes e para além do cinema, que ela necessariamente constitui um ponto de partida para qualquer entendimento sobre a diferença sexual e seus efeitos ideológicos na construção de sujeitos sociais e sua presença em todas as formas de subjetividade".
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