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Disco perdido de Gaye mira os EUA de Nixon e acerta a América de Trump

O cantor e compositor norte-americano Marvin Gaye aponta para os EUA de Nixon e acerta nos EUA de Trump - TAB
O cantor e compositor norte-americano Marvin Gaye aponta para os EUA de Nixon e acerta nos EUA de Trump Imagem: TAB

Tiago Dias

do TAB, em São Paulo

19/04/2019 04h03

É algo realmente mágico quando um álbum de Marvin Gaye, dado como perdido, ressurge em pleno 2019. Engavetado há 47 anos, "You're the Man" vê a luz pela primeira vez em um formato próximo ao original. É uma grande chance para novos ouvintes se conectarem a um dos maiores músicos da história, que cantou as aflições do mundo naqueles anos 1970, mas que também ajuda a entender o presente.

Apesar de três novas remixagens (desnecessárias, nota-se), feitas pelo produtor Salaam Remi (que trabalhou com Amy Winehouse e Nas), "You're the Man" conserva, como uma cápsula do tempo, o auge criativo que o artista vivia em 1972, mas surpreende ao parecer falar sobre a América de Trump.

Gaye soa muito vivo logo na abertura do álbum. Na faixa-título, os falsetes característicos não escondem uma certa fúria: "Think about the mistakes you make / I believe America's at stake (Pense nos erros que você comete / Eu acredito que a América está em jogo)". Na capa do álbum, ele nos encara, como se cobrasse uma resposta dos políticos para os problemas norte-americanos. Era época de uma conturbada eleição presidencial, que reelegeu Richard Nixon presidente e se tornaria o estopim para o cancelamento do álbum.

Não faltam paralelos entre 1972 e 2019, com os republicanos Nixon e Trump compartilhando de um desdém pelos valores liberais e nutrindo uma abordagem autoritária para lidar com os inimigos.

Para David Ritz, biógrafo de Gaye, trazer esse momento para 2019 é mais que adequado. "É quando isso [a mensagem] é necessária".

Gaye, que na época ainda colhia os frutos do mítico "What's Going On" no topo das paradas, talvez ainda hoje repetisse a questão do refrão: "O que está acontecendo?" - e certamente ainda não saberia a resposta.

Um homem político

Mas antes é preciso falar do passado. A consciência política do artista teve início na virada dos 1960 para os 1970, época em que o sonho hippie estava sendo enterrado. Gaye vinha de uma fase próspera nas paradas musicais. Era o dono do maior recorde de vendas da Motown - "I Heard It Through the Grapevine" -, mas não escondida o descontentamento com o próprio trabalho, que considerava irrelevante frente às transformações sociais do mundo.

A experiência de seu irmão Frankie na Guerra do Vietnã foi determinante para essa virada de página. "[O episódio] galvanizou a consciência política de Marvin, dando-lhe uma visão mais mordaz e crítica sobre as hipocrisias políticas deste país", explica Ritz, em entrevista recente à revista "Rock Cellar".

É daí que surge "What's Going On", que abraçava um conceito - algo ainda muito incipiente na fábrica de hits que era a Motown - sob a perspectiva de um veterano de guerra que volta aos Estados Unidos, com todas suas "injustiças, males e bens", como descreveu Gaye em uma rara entrevista na época, publicada anos depois pelo "The Guardian".

Pode parecer pouco, no momento em que os artistas pop de hoje fazem a ponte com o espírito do tempo de forma tão natural, mas Gaye escancarou um caminho sem volta na música negra norte-americana, marcando uma mudança para que artistas pudessem exercitar também sua voz política.

"Quando você está no topo, não há para onde ir senão para baixo", ele disse, certa vez, ao biógrafo. "Eu precisava continuar - aumentando minha consciência - ou eu voltaria para trás. Quando a guerra terminaria? Isso é o que eu queria saber - a guerra dentro da minha alma". Em 1972, Gaye foi buscar essa paz novamente no estúdio, onde gravou "You're the Man", o primeiro single do novo projeto.

"Tenho que votar em você"

Do lado de fora do estúdio, as campanhas dos candidatos à presidência escalavam em uma disputa entre o senador democrata George McGovern, um candidato antiguerra, e Richard Nixon, o então presidente que defendia a ideia de vigiar e punir seus supostos inimigos.

Marvin Gaye em estúdio em 1973 -  Jim Britt/Michael Ochs Archive/Getty Images -  Jim Britt/Michael Ochs Archive/Getty Images
Imagem: Jim Britt/Michael Ochs Archive/Getty Images

"You're the Man (Parts 1 & 2)" foi lançado no verão e trazia Gaye em sua melhor forma, encarnando as reais preocupações dos EUA. O groove e levada funk faziam a cama para que a voz de Gaye, multiplicada em vários canais, transmitisse desconfiança sobre aquela campanha. Ele versa sobre "tributação", "inflação" e "falta de empregos". Em resumo: "Políticos e hipócritas estão nos tornando lunáticos".

"Não nos dê nenhum sinal de paz / vire-se e roube as pessoas às cegas", ele sussurra, em uma aparente referência ao "plano secreto" de Nixon para acabar com a Guerra do Vietnã. E questiona: "Você pegaria em armas pelos nossos filhos? / Consertaria tudo de errado que esta administração fez?" Irônico, ele chega a uma conclusão, como se não tivesse opção: "Eu tenho que votar em você".

Não havia menção a nenhum dos candidatos, mas na época parecia que apenas uma pessoa poderia ser o homem do título. E essa pessoa, para a apreensão do dono da Motown, Berry Gordy, era Nixon.

O todo-poderoso da gravadora não apenas tinha convicções mais próximas ao candidato republicano, como achava que Gaye estava se excedendo em suas opiniões políticas. Acostumado a ter o que o cantor chamava de "desacordos semiviolentos", Gordy se negou a fazer a promoção do single e "You're The Man" amargou a 50ª posição na Billboard. Em meio a essa queda de braço, Nixon ganhou a eleição, e Gordy convenceu Gaye a engavetar indefinidamente o projeto do álbum.

Poucos dias depois do lançamento do single, era noticiado o assalto à sede do Comitê Nacional Democrata, em Washington, em plena campanha eleitoral. Cinco pessoas foram detidas quando tentavam fotografar documentos e instalar aparelhos de escuta no escritório do Partido Democrata. O caso entraria para a história com o nome de Watergate - e faria o presidente reeleito renunciar dois anos depois.

No entanto, as revelações do caso Watergate enfraqueceram o presidente em pouco tempo. A investigação identificou que Nixon não apenas sabia das operações ilegais de seu partido durante as eleições, como também tentou atrapalhar as investigações. Em 1974, a situação estava insustentável, e Nixon renunciou.

Corte para 2019. Em seu terceiro ano na cadeira de presidente, Donald Trump também acena para um acordo de paz com a Coreia do Norte, ao mesmo tempo que faz discursos inflamados contra novos inimigos, entre eles, os imigrantes, em especial, os latino-americanos. E, como Nixon, viu sua própria eleição ser questionada após suspeitas de que ele teria manipulado o eleitorado, imerso nas redes sociais, com ajuda de hackers estrangeiros, robôs e fake news.

Depois de quase dois anos de investigação, o relatório do procurador especial Robert Mueller sobre uma suposta intromissão russa nas eleição americana de 2016 não encontrou evidências de conluio da campanha de Trump com a Rússia, mas "tampouco o exonera", tanto que ainda há a chance de o presidente sofrer uma acusação de obstrução de justiça.

Alma em guerra

Mais leve e romântico do que supunha Gordon na época, "You're the Man", o disco, pode até servir como antídoto em um momento de crise moral e política. Mas assim como faz na faixa-título, não deixa de ecoar questões que resistem quase cinco décadas depois.

Enquanto prega mais amor em "Try It, You'll Like It", Gaye parece pouco esperançoso quanto ao futuro em "The World is Rated X" e "Where Are We Going?", em que canta: "Dia após dia as chamas aumentam / Vidas e dores, sim, eles alimentam o fogo."

Em 'We Can Make It Baby', Gaye parece analisar os direitos das mulheres, e chega a cantar, em uma versão alternativa de "You're the Man", que encerra a ideia do álbum como uma suíte, que "talvez devêssemos ter uma mulher presidente". Na letra, ele acrescenta algumas questões: "What about marijuana? What about peace, peace in the land? (E sobre a maconha? E sobre a paz, a paz na terra?)".

A canção natalina "I Want to Come Home For Christimas" parece inofensiva, até revelar que o narrador da canção é, na verdade, um prisioneiro de guerra.

Marvin Gaye: o homem, o soul e a alma. - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Em "Piece of Clay", canção que havia sido lançada em 1995, ele parece versar sobre uma sociedade moldada por forças ditatoriais. Pérola da dupla de compositoras Gloria Jones e Pamela Sawyer, a canção traz uma das maiores performances vocais de Gaye, que logo na abertura canta: "Pai, pare de criticar seu filho."

De fato, havia muitas guerras sendo travadas na alma do artista, que derramou as emoções de uma vida de atritos em cada música.

O álbum, finalmente lançado, celebra o ano que o cantor completaria 80 anos, se não fosse uma das tragédias mais insensatas da música. Em 1984, um dia antes de completar 45, Marvin Gaye foi assassinado a tiros pelo próprio pai, o pastor evangélico Marvin Pentz Gay Sr., com quem teve uma relação violenta e conflituosa desde a infância, quando começou a cantar no coral da igreja do pai. Pelo menos por pouco mais de uma hora, em pleno 2019, Gaye ressuscitou.