É possível imaginar um futuro na ficção científica com igualdade de gênero?
Dois séculos separam o mundo de hoje daquele de 1818, ano no qual foi lançado "Frankenstein", considerado o primeiro livro de ficção científica da história. A autora foi a britânica Mary Shelley, que o publicou anonimamente. Hoje as escritoras não precisam mais se esconder, mas ainda assim não podemos considerar que haja igualdade de gênero nesse campo literário.
O espaço para a criação e a representação da figura da mulher nas narrativas foram tema da discussão "O futuro da mulher na ficção científica", que reuniu a escritora Ana Rusche, a jornalista especializada em cultura pop Gabriela Franco e a escritora e militante negra Andreza Delgado. A jornalista Julia Ferrer foi a mediadora.
A mesa fez parte da programação do Festival Path, o maior evento de inovação e criatividade do Brasil e que acontece neste fim de semana, na região da Avenida Paulista, em São Paulo. A edição deste ano é apresentada pelo TAB.
Um momento forte da conversa partiu da mediadora, que aproveitou o fato de a ficção científica nos possibilitar avançar no tempo. "É possível imaginar um futuro na ficção científica com equidade de gênero?", provocou Furrer. Segundo a jornalista, ainda é necessário questionar se, ao chegar a posições de poder, as mulheres estão liderando de forma autêntica ou se reproduzem a lógica masculina, com atitudes opressoras já consagradas pelos homens.
"É difícil ser mulher em qualquer lugar e, no mundo nerd, não seria diferente", afirmou Gabriela Franco, que também é idealizadora do coletivo Minas Nerds. Apesar de vivenciar diversos ataques machistas no seu segmento, ela acredita que a sociedade está num caminho sem volta na luta por igualdade.
Franco diz que é um equívoco pensar que as mulheres ganharam voz. Na visão dela, isso sempre existiu. A questão, diz, é que ao longo da história o grupo foi sistematicamente silenciado. Para ela, mesmo assim as conquistas femininas provocaram embates e ainda encontrarão resistência de parte de diversos grupos na sociedade.
A ascensão das minorias ameaça o status quo, ameaça o patriarcado e os donos de privilégios, que não sabem o que fazer quando chega uma mulher trans. Se for trans e negra, então... Isso está ligado à política e à ascensão da ultra direita. A gente vive hoje uma crise política por conta da ascensão dessas minorias: das mulheres, dos grupos de negros e de LGBT
Gabriela Franco, jornalista
Para Andreza Delgado, escritora negra, analisar o papel da mulher na literatura passa, obrigatoriamente, pelo afrofuturismo, vertente em que a ancestralidade de raiz africana é resgatada ao mesmo tempo em que se projeta uma noção de futuro.
Essa é uma possibilidade de construir uma outra narrativa, em que o negro pode recontar o seu passado e com uma perspectiva de estar vivo no futuro. No caso da mulher negra, o futuro é sobre sobrevivência, porque a gente quer viver. E hoje sou otimista porque sei que, em determinado momento da história, eu sequer poderia estar aqui hoje [por ser mulher, discutindo um tema ainda dominado por homens], discutindo de forma livre [por ser negra e livre, e não escrava]
Andreza Delgado, escritora
Em sua fala, a escritora Ana Rusche resgata um questionamento de uma das maiores especialistas em afrofuturismo no país, Kênia de Freitas. "Já parou para pensar que, para muitos povos que vivem no Brasil, entre negros e indígenas, a distopia já aconteceu?", afirma.
Autora de "A telepatia são os outros" (Monomitoeditorial, 2019), Ana considera curioso quando algumas pessoas considerem as histórias com final feliz menos interessantes que distopias como "O Conto da Aia", romance distópico publicado em 1985 escrito pela canadense Margaret Atwood - e que deu origem à série "Handmaid's Tale". "As pessoas ficam meio hipnotizadas pelo horror. É como se aquele caos fosse sedutor. Mas embora eu considere as distopias essenciais para pensar o mundo, por serem críticas e poder antecipar coisas que podem dar errado, ainda prefiro as histórias que apontam uma saída", afirma.
Menos otimista que as colegas, Ana não acredita que a igualdade de gênero vá acontecer ainda neste século. Ela defende que é muito importante ter mulheres em situações de poder, porque esse é um modo de fazer com que outras mulheres sejam apoiadas, tenham espaço e reconhecimento - inclusive na literatura.
Ter mais diversidade em equipes de roteiro e entre o corpo editorial pode evitar a continuidade de narrativas que colocam a figura da mulher de forma distorcida, objetificada ou alvo de violência. "O estupro ainda é trabalhado nas narrativas como um rito de iniciação da trajetória da heroína, como algo positivo e necessário para um momento em que a personagem 'renasce' e segue um destino de superação. E isso só vai mudar quando tivermos mais mulheres contando as histórias", afirma a escritora.
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