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'Mundo dentro do mundo', cadeia feminina é tema de 'Flores do Cárcere'

Mel em cena do filme "Flores do Cárcere" - Reprodução/Academia de Filmes
Mel em cena do filme "Flores do Cárcere" Imagem: Reprodução/Academia de Filmes

Letícia Naísa

Do TAB, em São Paulo

26/10/2019 04h00

Há exatos 15 anos, a administradora Flavia Ribeiro de Castro entrou em um presídio feminino pela primeira vez. Em outubro de 2004, Castro começou a dar aulas de informática para mulheres encarceradas e mudou a rotina da prisão. Os resultados de sua passagem pela Cadeia Feminina de Santos viraram material para o documentário "Flores do Cárcere", exibido na 43° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com sessão neste sábado (26).

Com sensibilidade e leveza, o filme conta o que aconteceu com seis mulheres que conviveram com a professora na prisão, ao longo daquele ano. O documentário é inspirado no livro homônimo escrito por Castro em 2011. Além do registro do presente, na tela há cenas do passado feitas pela voluntária e pelas próprias detentas, em sua maioria jovens, rebeldes e arrependidas. Elas mostram como era o cotidiano e o ambiente da prisão.

"A cadeia é um mundo dentro de um mundo. Como se você tivesse um labirinto dentro de um mundão, só que sem saída. É assim", define Mel, 38, uma das personagens do documentário. "É um lugar em que você tem que ser fria", conta. Presa aos 22 anos, cumpriu quase quatro anos de pena, sendo um deles em Santos. Foi pega roubando no calçadão da praia.

Segundo dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), roubo e furto correspondem a 20% dos crimes cometidos por mulheres privadas de liberdade, enquanto 62% estão relacionados a tráfico. Em sua maioria, as encarceradas pegas por causa de drogas mantinham relacionamento de algum tipo com um homem envolvido com o tráfico. Há 42 mil mulheres presas hoje no Brasil.

"Achava que ali era a faculdade, que eu ia sair mais criminosa, pior, assaltando banco. Era essa a minha mente naquela época", diz Mel, em entrevista ao TAB. "Essa é a mente de milhares que estão lá dentro, ainda pensam assim. Mas depois de um ano eu estava mudada, a mente vai mudando por causa da saudade, do sofrimento. O dia a dia me obrigou a pensar diferente, nos meus filhos também, queria ser um bom exemplo pra eles." Hoje, Mel estuda gastronomia e quer abrir um restaurante.

O ambiente da prisão de Santos é descrito pelas mulheres como um abismo e horrível. A cadeia foi desativada em 2014 por conta das más condições estruturais e da superlotação. Quando Castro esteve por lá, havia cerca de 200 detentas em um ambiente com capacidade para 60. Em cada cela, havia apenas seis camas para cerca de 20 mulheres por cela.

O trabalho de Castro fez algumas delas quererem mudar de vida. "A partir da construção de espaços mais afetivos e de diálogo, a gente foi transformando as regras, criando momentos de liberdade dentro da prisão", conta ela. Chamada de mãe por Mel e suas colegas, hoje ela é responsável pela Casa Flores, uma ONG com sede em São Paulo que oferece apoio para mulheres em situação de vulnerabilidade.

Mel e Flavia durante filmagens do documentário "Flores do Cárcere" em Santos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mel e Flavia durante filmagens do documentário "Flores do Cárcere" em Santos
Imagem: Arquivo pessoal

"O filme vai além do que ele parece tratar, provoca as pessoas a pensarem sobre que mundo queremos", diz Castro. "Ele amplia a exposição da nossa causa e é um passo no caminho da construção de espaços de fala para essas mulheres que têm tanto a dizer."

A verdade de um documentário

Cinco das seis histórias são verdadeiras e contadas pelas próprias mulheres que passaram pela experiência do encarceramento. Uma das personagens, Rosa, é interpretada por uma atriz que representa outras tantas mulheres retratadas no livro de Castro que não foram encontradas ou não quiseram dar depoimento.

Personagens do documentário "Flores do Cárcere" na Casa Flores - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Personagens do documentário "Flores do Cárcere" na Casa Flores
Imagem: Arquivo pessoal

A decisão inicialmente desagradou a Castro, mas foi a melhor saída que os diretores, Bárbara Cunha e Paulo Caldas, encontraram para contar as histórias que ficaram de fora. Outro motivo para o uso da ficção em um documentário foi criar uma terceira linha narrativa na história que trata da verdade. "A realidade existe na interpretação de cada um", diz Caldas.

Para Cunha, um documentário pode ser apenas um ponto de vista sobre a história contada. "Qualquer pessoa não é apenas o que ela é, mas também o potencial que ela tem", afirma.

Peculiaridades do cárcere feminino

"Flores do Cárcere" também joga luz em um assunto pouco debatido, que é a condição de ser mulher presa. "O sistema carcerário como um todo é falho. No feminino, tem um agravante: uma mãe presa implica consequências para o microcosmos dela", diz Cunha. "O cárcere foi construído numa estrutura machista e patriarcal, não está adaptado para receber crianças, os filhos, as grávidas. E os homens não visitam. É um sistema duro para as mulheres, que não se responsabiliza pelo impacto na vida delas."

As consequências do encarceramento feminino são diferentes, diz Caldas. "Elas criam os filhos e quando são presas, estão tirando o futuro dos filhos. Em geral, acaba induzindo as crianças à violência", afirma. Para ele, é importante tratar do tema no atual contexto, pois esbarra no problema de violência no país. "Quando se fala disso, se chega na questão do sistema prisional, é um setor da sociedade que é esquecido, ninguém quer saber o que acontece lá dentro. A sociedade lava as mãos. Mas é um tema fundamental num momento de retrocessos sociais e políticos, temos que intensificar o debate."

Xal e Flavia Ribeiro de Castro durante as filmagens de "Flores do Cárcere" - Bárbara Cunha - Bárbara Cunha
Xal e Flavia Ribeiro de Castro durante as filmagens de "Flores do Cárcere"
Imagem: Bárbara Cunha

Para Castro, todo o sistema é construído para que a pessoa retorne à prisão, uma vez que elas não têm apoio jurídico após saírem da cadeia e não conseguem se reposicionar no mercado de trabalho por causa do preconceito. Além dos problemas estruturais da cadeia, há o despreparo para lidar com o que vem depois. Xal, 37, uma das personagens do documentário, foi e voltou para a cadeia várias vezes por conta de seu envolvimento com o crack. "Eu só usava droga e ia para a cadeia, estava sempre no crack e na maloca", conta. "E o povo é cheio de julgar, mas quem não erra?".

A experiência de Xal de gravar o filme foi horrível, conta. "Ainda estava alucinada na droga. O que me fez aceitar foi a insistência do amor e da minha mãe", diz. Hoje, Xal está escrevendo sua biografia porque quer trocar experiências e mostrar quem era e no que se transformou hoje. Xal, que se recupera do vício, conta fazê-lo pela filha, de quem quer se reaproximar.

"Encarar a vida sem droga é dolorido. Você tem que dar o primeiro passo, tem que querer", afirma. "Estou amando viver hoje, não troco por nada o que eu tenho hoje e quero fazer pelos outros o que fizeram por mim, encontrei pessoas que acreditaram em mim quando eu não acreditava em mim mesma. Me tiraram do ódio e me levaram para o amor."